sábado, 12 de agosto de 2017

Catando imagens digitais


            Quando adolescente pude comprar uma câmera digital. Uma filmadora, para ser mais preciso. Esperava com ela saciar minhas aspirações criadoras, de contador de histórias. Mas algo desta experiência de contato próximo com uma câmera me incomodava. As imagens que gravava não tinham a qualidade que apresentam os filmes que via. E eu queria fazer filmes como aqueles, claro sabendo das limitações materiais, mas esperando que a câmera me fornecesse uma imagem limpa. Algo que pudesse aproximar minhas produções modestas daquelas que admirava. Aproximar meu filme feito com câmera de 900 reais dos filmes filmados em película. Comecei a aceitar, relutantemente, a diferença. Aproveitei para aprender alguns detalhes artísticos. Se tecnicamente pode ser que não tivesse imagem semelhante, ao menos em composição e iluminação de quadro pudesse fazer algo melhor. De qualquer jeito, os “problemas” que me incomodavam muito permaneciam lá: as silhuetas de corpos em movimento se perdiam em quadriculados típicos da imagem digital; o microfone captava o som dos fios ou o que quer mais que estivesse solto dentro da câmera, quando filmava em movimento, com a câmera na mão; o microfone ainda captava a alavanca de zoom sendo operada. Tudo isto me incomodava e eu queria fazer filmes o mais profissionalmente possível. O caso é que o “profissionalismo” que eu buscava se encontrava diretamente ligado a uma estética do filme (que inviabiliza a câmera, mascara o fato de ser um filme) e uma forma de produzir (os programas e profissionais que “limpam” o filme). O que não conhecia então é a existência de vários cinemas que lutam contra isto.

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            Em minhas pesquisas sobre filmes, em minhas buscas cinefílicas, encontrei Prazeres desconhecidos (2002), do chinês Jia Zhangke. Cheguei a este autor como costumo chegar a tantos outros: a acumulação de citações e referências à sua obra nas críticas, nas colunas, nas entrevistas sobre cinema. Pouco lembro do filme, mas lembro do impacto que causou em mim as imagens filmadas em digital. Escolhi assisti Prazeres desconhecidos porque tinha lido um texto em que dizia que tinha sido filmado em DV. Conhecia o formato e fiquei curioso de ver um filme “profissional” feito em DV, que até onde sei foi criado para ficar no lugar do VHS. E uma das coisas que mais me deixou impactado com o filme foi exatamente a má qualidade da gravação em digital, e como isto não parecia ser tão importante para Jia construir seu filme. Uma coisa lembro com certa clareza: o mesmo “problema” que via em minha câmera, vi no filme de Jia. As imagens quadriculadas, não por conta da baixa qualidade da cópia em que vi o filme, e sim pelo formato em que o filme havia sido gravado. Porque era o mesmo “problema” que tinha em minha câmera digital: as bordas dos corpos em movimento não desenhando um tracejado preciso. O que me passei na época foi a relação entre o digital e a modernização trazida à sociedade pelos mecanismos do capital. 15 anos separam o lançamento de Prazeres desconhecidos da data em que escrevo este texto. Nestes 15 anos as câmeras DV deram lugar à câmera em DVD, que deu lugar ao armazenamento em cartão de memória ou HD interno, a imagem deixou de ter qualidade de 720p, para 1080p, hoje já se encontrando em 4k – formato que, dizem, aproxima o digital da película de alta qualidade. O digital visto sob esta perspectiva poderia ser considerada como um formato terrivelmente arriscado para se filmar. Um filme gravado em digital, daqui alguns anos, estará marcado pela idade do formato em que fora filmado (foi um dos motivos que levou Richard Linklater a optar por filmar Boyhood em película). Em parte, é o que acontece com Prazeres desconhecidos. E coisa que não acontecia com o filme em película – a má qualidade do filme se apresenta em maior granulação da imagem, o que de longe é visto como uma má qualidade ou um aspecto datado. Prazeres desconhecidos poderá perder este caráter de “datado” caso seja feita uma restauração tal como se costuma fazer de certos filmes – ajustando cores, sons. O que acontece é que o objetivo de Jia não era de fazer um filme “limpo”. O digital é parte deste mundo moderno, desta nova fase da sociedade globalizada.
            Bom lembrar que Jia não foi único no uso do digital, muito menos pioneiro. Devemos lembrar de Lars von Trier, que para além de seu uso do plano do dogma por ele desenhado junto a outros cineastas dinamarqueses, adicionou à conta a filmagem de longas-metragem em digital. Coisa que cabia perfeitamente dentro do novo mundo que Trier queria trabalhar em seus filmes pós-dogma. O digital permite maior liberdade para a câmera de entrar na ação, de dar ar frenético. É o que Trier faz em seus filmes, mesmo naqueles em que não mais utiliza uma tecnologia menor para produção (seu constante e nem sempre justificado uso da câmera na mão). Jia faz o contrário em Prazeres desconhecidos.

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            Uma dos usos que mais me chamou atenção com o uso do digital partiu de um filme que não esperava ter esse discurso tão bem desenvolvido. E num filme realizado não muito distante cronologicamente de Prazeres desconhecidos. De 2000, Catadores e eu é um filme a primeira vista bastante singelo de Agnes Varda. Mais uma vez Varda nos convidando para o seu mundo, sua paixão pelos gatos, para dentro de sua casa, para suas viagens, para sua vizinhança. Mas desta vez há algo de diferente: o uso do digital. Coisa que ela deixa bem claro, desde o início. Se se mostra carregando a câmera, consideravelmente mais simples, mais leve, mais maleável que as outras em película – e de menores gastos. Para os projetos de Varda, nada poderia casar melhor do que uma câmera digital.
            Antes de continuar o comentário sobre o filme de Varda, voltemos um pouco no tempo, para aquele 1994 em Lisboa com Wim Wenders. O céu de Lisboa se dirige diretamente a esta transformação no fazer fílmico. A passagem da película para o digital. O cineasta em crise que desaparece e arma crianças da vizinhança com câmeras digitais que filmam inúmeras inutilidades. Verdade, o lixo imagético produzido pelo digital é enorme! (Demos uma olhada breve na internet). Ao momento em que Wenders faz este filme duas coisas se somavam: a má qualidade dos equipamentos digitais e a incapacidade dos profissionais de cinema em saber trabalhar com digital. O que nos traz de volta a Varda. Um filme sobre as pessoas que catam o que é jogado fora pelos outros é tema interessante para um filme: mais interessante ainda é fazer este filme em digital, quando a capacidade e falta de culpa em filmar tudo, jogar fora muito, utilizar de fato pouco, é muito mais fácil (e barato). Assim como suas personagens que se alimentam do que sobra nas feiras, do que os supermercados jogam fora porque “não parece mais bonito para o comprador”, Varda recupera as imagens que seriam imediatamente descaradas por qualquer montador com algum senso estético. Um senso estético desenvolvido ao longo de décadas de fazer cinema. Daí aparecer em Os catadores e eu imagens em que Varda, supostamente, deixou a câmera filmando, e na tela vemos o chão e a tampa da tela pendurada por uma cordinha. Um plano naturalmente descartável – não para Varda, seguindo a lógica do discurso de suas personagens.
            O que me remonta a um dado curioso que lembro de ter apreendido ainda adolescente, quando de minha crise com a câmera digital que tinha comprado, incapaz à época de fazer a associação. Sem destino (1969) trouxe para o cinema hollywoodiano algo de novo para sua estética, que até então seria encarado como “problema”, “defeito”, ou mesmo falta de “profissionalismo” dos envolvidos. Quando se filma um pôr-do-sol um problema frequente é a luz batendo nas lentes da câmera e criando manchas (vários círculos que aparecem na imagem final). Até os anos 1960 este tipo de imagem seria descartada de imediato da montagem. Seria uma imagem defeituosa que não merece fazer parte do filme. Isso porque não coaduna com a estética realista que o cinema tradicional prefere passar: enganar o espectador o máximo de tempo possível do realismo dos eventos que ocorrem a sua frente. Não devemos nos dar conta de que há cortes no filme, muito menos de que há uma câmera. Os cortes devem ser invisíveis (daí as regras de sequência), assim como a câmera (nada de imagens de sombra ou reflexo da câmera). As manchas da luz do sol nas lentes é sinal de que o que estamos assistindo é um filme e quebraria a “ilusão” do real – tão cuidadosamente trabalhada por todos os outros departamentos que cuidam da aparência de um filme (figurino, cenários). Para uma rebelião, uma nova estética. Sem destino queria apresentar ao mundo o cinema da contracultura, certamente não poderia fazê-lo sob a forma do velho cinema.

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            Assistir a Os catadores e eu despertou em mim a ciência de que o digital é uma nova forma de fazer cinema. Nada de muito original de minha parte. Um momento em que o cinema se abre mais amplamente para a independência dos cineastas. Abre as portas para que mais pessoas possam fazer cinema. Para que possam fazer seus filmes. Ampliara as fronteiras da estética cinematográfica. Varda entendeu isso. Em parte porque seu cinema já se desenhava neste sentido, o digital foi um adendo. Seu cinema de caráter coletivista, familiar. Feito em casa, não em estúdio. O que é mais importante de Os catadores e eu, sob esta perspectiva, é que o digital não deve ser utilizado simplesmente como mais um formato de filmar. Deve ser enxergado como meio para construção de uma nova estética do cinema. Em que os restos podem (e devem) ser reaproveitados. Não é defeito deixar a câmera aparecer, não é defeito o microfone captar mais do que o movimento dos atores e suas falas. É próprio do digital. Antes mesmo do digital Abbas Kiarostami já fazia filme em que ficava explícito ser um filme. Em Close-up, a câmera segue suas personagens e o diretor e operador de câmera conversam. Microfones são instalados nas personagens. O microfone deixa de seu escutado numa cena externa. Isto Kiarostami fez ainda em película. Em digital, as opções se ampliam. Não é por qualquer “defeito” técnico que o espectador deixará de acompanhar o filme – esta parece ser uma das principais considerações dos defensores do realismo do filme de ficção, em que a técnica deve estar invisível. A tentativa de fazer a ficção “credível”. Mas o digital passou a ser abraçado pelos cineastas, mesmo pelo grande cinema de Hollywood. E assim, os realizadores menores, independentes, passaram a se valer de técnicas avançadas (em alguns casos de alto custo para o tipo de filme que fazem, para o tipo de investimento que podem fazer) buscando aproximar-se da estética padrão corrente no cinema mundial. Foi esta busca pela padronização com o que faz o grande cinema que me deixou em conflito com o digital. Este conflito não era só meu. Porque há a possibilidade de tachar um filme de “amador” simplesmente pelo abraçamento do digital em sua crueza. Uma câmera de película 35mm não era viável para qualquer realizador, e a maioria alugava o equipamento. O digital é acessível a todos. O que não é acessível a todos é a estética final empregada nos filmes. O que tende a universalizar os filmes. Criar uma estética padrão do que é o “bom cinema”. O filme de cores controladas, de som trabalhado exaustivamente em pós-produção para inserir detalhes ínfimos com maior clareza. O digital deveria ser o momento de assumir riscos por parte do realizador. De mostrar os restos como alimentos de boa qualidade. Quiçá adotar algumas características do primeiro cinema? (Como o duplo pouso na lua em Viagem à lua, de Méliès).

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            Isto dito, chegou a hora de fazer as pazes com minha velha câmera. Pena, ela não funciona mais. Males do século XXI.

domingo, 23 de julho de 2017

O cinema

Virginia Woolf


            Dizem que o selvagem não mais existe em nós, que somos uma sociedade esgotada, que tudo já foi dito, e que é muito tarde para ser ambicioso. Mas presumo que estes filósofos esqueceram-se dos filmes. Nunca viram os selvagens do século XX assistindo aos filmes. Nunca se sentaram em frente a uma tela e pensaram em como toda a roupa em seus corpos e carpetes a seus pés, não os separam a grande distância daqueles homens nus de olhos brilhantes que batem duas barras de ferro juntas e escutam em repique a antecipação da música de Mozart.

            As barras neste caso, claro, são tão trabalhadas e tão cobertas com acréscimos de materiais alienígenas que é extremamente difícil escutar qualquer coisa distintivamente. É tudo vai e vem, multidão, caos. Estamos observando, à beira de um caldeirão, fragmentos de todas as formas e sabores fervilhando; agora e novamente alguma vasta forma se eleva e parece prestes a se arrastar para fora do caos. À primeira vista, a arte do cinema parece simples, até estúpida. Há o rei balançando as mãos para um time de futebol; há o iate de Sir Thomas Lipton; há Jach Horner vencendo o Grand National. O olho passa por tudo isso instantaneamente, e o cérebro, igualmente excitado, se acalma para assistir os acontecimentos sem se agitar para pensar. Para o olho ordinário, para o olho do inglês a-estético, é um simples mecanismo que garante que o corpo não caia em buracos de carvão, providenciando ao cérebro brinquedos e doces para mantê-lo quieto, garantindo que ele continue se comportando como uma enfermeira atenciosa até que o cérebro venha à conclusão de que é tempo para acordar. Qual é seu propósito, então, para ser despertado de repente no meio de sua agradável sonolência e clamado por socorro? O olho está com dificuldades. O olho quer ajuda. O olho fala ao cérebro, “Algo está acontecendo que não consigo compreender. Você é necessário.” Juntos eles olham para o rei, o barco, o cavalo, e o cérebro vê de uma vez que eles ganharam uma qualidade que não pertence à simples fotografia da vida real.

            Não se tornaram mais bonitos no sentido em que imagens são bonitas, mas devemos chamar (nosso vocabulário é miseravelmente insuficiente) mais reais, ou reais com uma realidade diferente daquela em que percebemos a vida cotidiana? Nós as contemplamos como elas são quando não estamos lá. Vemos a vida como ela é quando não temos parte nela. Enquanto observamos, parecemos ser removidos da mesquinhez da existência. O cavalo não nos derrubará. O rei não apertará nossas mãos. A onda não molhará nossos pés. Deste ponto de vantagem, enquanto vemos as antiguidades de nosso tipo [kind – referência ao humano], temos tempo de sentir pena e divertimento, de generalizar, de dotar um homem com os atributos de uma raça. Assistindo o barco velejando e a onda quebrando, tempos tempo de abrir nossas mentes para a ampla beleza e registrar no todo disto a estranha sensação – esta beleza irá continuar, e esta beleza irá florescer quer contemplemos, quer não.  Além do mais, tudo isso aconteceu dez anos atrás, nos dizem. Estamos vendo um mundo que foi para debaixo das ondas. Noivas estão surgindo na abadia – agora são mães; mestres são ardentes – agora estão silenciosos; mães estão chorosas; convidados estão alegres; isto foi ganho e aquilo foi perdido, e está acabado e encerrado. A guerra surgiu do abismo aos pés de toda inocência e ignorância, portanto, dançamos e piruetamos, labutamos e desejamos, e por isso o sol brilhou e as nuvens escorreram, até o fim.

            Mas os cineastas parecem insatisfeitos com tão óbvias fontes de interesse como as passagens de tempo e a sugestão de realidade. Desprezam voos de gaivotas, embarcações no Tâmisa, o Príncipe de Gales, a Mile End Road, o Circo Picadilly. Querem melhorar, alterar, fazer uma arte que lhes seja própria – naturalmente, porque muito parece adentrar em seu escopo. Muitas artes parecem esperar prontas para oferecer sua ajuda. Por exemplo, há a literatura. Todas as famosas novelas do mundo, com suas bem conhecidas personagens e suas famosas cenas, apenas pedindo, parece, para serem colocadas em filme. O que poderia ser mais fácil e simples? O cinema caiu sobre sua presa com imensa rapacidade, e até o momento subsiste sobre o corpo de sua infeliz vítima. Mas os resultados são desastrosos para ambos. A aliança não é natural. Olho e cérebro são cortados em pedaços sem piedade enquanto tentam vaidosamente trabalhar em conjunto. O olho diz “Aqui está Anna Karenina”, uma moça voluptuosa em veludo preto, vestindo pérolas, vindo em nossa direção. Mas o cérebro diz, “Mas esta não é mais Anna Karenina do que é a Rainha Victoria”. Porque o cérebro conhece Anna quase inteiramente pelo interior de sua mente – seu charme, sua paixão, seu desespero. Toda a ênfase é dada pelo cinema sobre seus dentes, suas pérolas, e seu veludo. Então, “Anna se apaixona por Vronsky” – o que quer dizer, a moça em veludo preto cai nos braços de um cavalheiro de uniforme e eles se beijam com enorme suculência, grande deliberação, e infinita gesticulação, no sofá de uma extremamente bem arrumada biblioteca, enquanto o jardineiro incidentalmente corta o gramado. Então assim passeamos por algumas das mais famosas novelas do mundo. As soletramos em palavras de uma sílaba, escritas, também, no rabisco de um iletrado garoto na escola. Um beijo é amor. Um copo quebrado é ciúme. Um riso é felicidade. Morte é um ataúde. Nenhuma destas coisas tem qualquer conexão com a novela que Tolstói escreveu, e é apenas quando desistimos de tentar conectar as imagens com o livro que percebemos de alguma cena acidental – como o jardineiro cortando o gramado – que o que o cinema precisa fazer é lidar com seus próprios dispositivos.

            Mas quais, então, são estes dispositivos? Se deixar de ser um parasita, como fará para caminhar ereto? No momento, é apenas a partir de sugestões que se pode moldar qualquer conjectura. Por exemplo, numa exibição de Dr. Caligari dias atrás, uma sombra em forma de larva de repente apareceu no canto da tela. Inchou-se para um tamanho imenso, estremecida, abatida, e se afogou de volta para sua não entidade. Por um momento parecia incorporar alguma monstruosa imaginação doentia de um cérebro lunático. Por um momento pareceu que um pensamento poderia ser transmitido de forma mais eficaz do que por palavras. A monstruosa agitada larva parecia temer ela própria, e não a frase “Não tenho medo”. De fato, a sombra era acidental e o efeito não intencional. Mas se uma sombra, num certo momento, pode sugerir muito mais do que os próprios gestos e palavras de homens e mulheres em estado de medo, parece evidente que o cinema tem ao seu alcance inúmeros símbolos para emoções que até o momento não conseguiram encontrar expressão. O terror tem, além de suas formas ordinárias, a forma de uma larva; ele germina, cresce, treme, desaparece. A raiva não é só discurso e retórica, rostos vermelhos e punhos cerrados. É talvez uma linha preta torcida sobre uma folha branca. Anna e Vronsky não têm mais que se retorcer. Eles têm algo a seu comando – mas o quê? Há, nos perguntamos, algum segredo de linguagem que sentimos e vemos, mas nunca falamos, e, se é o caso, poderia isto ser feito visível para o olho? Há alguma característica própria do pensamento que possa se tornar visível sem ajuda de palavras? Há rapidez e lentidão; direcionamento de um dardo e vaporosa circunlocução. Mas tem também, especialmente em momentos de emoção, o poder de criação de imagens, a necessidade de levantar seu peso para outro portador; para permitir que uma imagem corra lado a lado junto com o pensamento. A semelhança do pensamento é por alguma razão mais bonita, mais compreensível, mais disponível, do que o próprio pensamento. Como todos sabem, em Shakespeare as mais complexas ideias criam correntes de imagens, as quais montamos, mudamos e torcemos, até chegarmos à luz do dia. Mas, obviamente, as imagens de um poeta não são fundidas em bronze ou traçadas a lápis. São um compacto de milhares de sugestões da qual o visual é apenas o mais óbvio e mais elevado. Mesmo a mais simples imagem, “Meu amor é como uma rosa, uma rosa vermelha, que desabrocha em junho”, nos apresenta impressões de umidade, calor e do brilho do carmim e a suavidade das pétalas inextricavelmente misturadas e amarradas sobre a exaltação de um ritmo que é em si a voz da paixão e hesitação do amante. Tudo isso, que é acessível a palavras e apenas a palavras, o cinema deve evitar.

            Ainda que muito de nosso pensar e sentir esteja conectado ao ver, algum resíduo da emoção visual que não é usada tanto por pintores ou poetas pode ainda se reservar ao cinema. Que tais objetos venham a não parecer com os objetos reais que vemos perante nós parece altamente provável. Algo abstrato, algo que se mova com a arte controlada e consciente, algo que exija a mínima ajuda das palavras e da música para tornar-se inteligível, ainda que utilizando-as subservientemente – de tais movimentos e abstrações os filmes devem, com o tempo, começar a ser compostos. Então, de fato, quando algum novo símbolo para expressar o pensamento é encontrado, o cineasta tem enormes riquezas em seu comando. A exatidão da realidade e seu surpreendente poder de sugestão devem ser tomados em questão. Annas e Vronskys – lá estão eles em matéria. Se dentro desta realidade ele poderia respirar emoção, poderia animar a perfeita emoção com pensamento, então sua recompensa poderia ser saudada com uma mão sobre a outra. Então, quando a fumaça derrama do Vesúvio, devemos ser capazes de ver o pensamento em sua selvageria, em sua beleza, em sua estranheza, repleta de homens com seus cotovelos sobre a mesa; de mulheres com suas pequenas bolsas escorregando para o chão. Deveríamos ver estas emoções misturando-se juntas e afetando-se mutuamente. Deveríamos ver violentas mudanças de emoção produzidas por sua colisão. Os mais fantásticos contrastes poderiam passar perante nós com a velocidade com que o escritor pode apenas labutar em vão; o sonho arquitetural de arcos e ameias, de cascatas caindo e fontes subindo, que às vezes nos visitam durante o sono ou se esculpem em quartos meio escuros, podendo ser percebidos perante nossos olhos acordados. Nenhuma fantasia poderia ser exagerada ou insubstancial. O passado poderia ser desenrolado, distâncias aniquiladas, e os abismos que deslocam novelas (quando, por exemplo, Tolstói tem que passar de Levin para Anna e ao fazê-lo sacode sua história e move e prende nossas simpatias) poderiam pela semelhança de plano de fundo, pela repetição de alguma cena, ser suavizados.

            Como tudo isto pode ser tentado, ou alcançado, ninguém no momento pode nos dizer. Somente somos intimados no caos das ruas, quando porventura alguma reunião de cores, sons, movimentos, sugerem que há ali uma cena esperando uma nova arte que a penetre. E às vezes, em meio à imensa destreza e enorme proficiência técnica do cinema, a cortina cai e observamos, ao longe, alguma desconhecida e inesperada beleza. Mas é apenas por um momento. Porque uma coisa estranha aconteceu – enquanto todas as outras artes nascem nuas, esta, a mais nova, nasceu completamente vestida. Pode dizer tudo antes que tenha qualquer coisa a dizer. É como se a tribo selvagem, ao invés de encontrar suas barras de ferro para brincar, encontrasse espalhadas pela costa violinos, flautas, saxofones, trompetes, pianos de cauda de Erard e Bechstein, e começasse, com incrível energia, mas não conhecendo sequer uma nota musical, a martelar e bater neles ao mesmo tempo.


Texto original pode ser encontrado aqui:
http://www.woolfonline.com/timepasses/?q=essays/cinema/full
Traduzido por Yves São Paulo.
A tradução deste texto não foi fácil. Agradeço a Maria Cândida Neres pela revisão.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Em apoio ao cinema

Martin Scorsese

Não sou nem escritor nem teórico. Sou um cineasta. Vi algo de extraordinário e inspirador na arte do cinema quando era bem jovem. As imagem que vi me impressionaram, e iluminaram algo em mim. O cinema me deu meios de compreender e eventualmente expressar o que era precioso e frágil no mundo ao meu redor. Este reconhecimento, esta faísca leva da apreciação à criação: acontece quase sem que se dê conta. Para alguns, leva para a poesia, ou dança, ou música. Em meu caso, foi o cinema.

Com certa constância, quando as pessoas discutem cinema, falam sobre imagens únicas. O carrinho de bebê descendo a escadaria de Odessa em Encouraçado Potemkin, por exemplo. Peter O’Toole soprando o fósforo em Lawrence da Arábia. John Wayne levantando Natalie Wood em seus braços próximo ao fim de Rastros de ódio. O sangue jorrando do elevador em O iluminado. O petróleo explodindo do guindaste em Sangue negro. Estas são todas passagens extraordinárias na história de nossa forma de arte. Extraordinárias imagens, certamente. Mas o que acontece quando se toma estas imagens daquelas que vieram antes? O que acontece quando as tira do mundo ao qual elas pertencem? Resta registros de artesanato [craftsmanship] e cuidado, mas algo de essencial se perde: o momento anterior e posterior a eles, os momentos iniciais que eles ecoam e os momentos seguintes cujo caminho eles preparam, e as centenas de sutilezas e contrapontos e acidentes de comportamento e acaso que fazem deles integrais à vida do filme. Agora, no caso do sangue que jorra do elevador em O iluminado, você realmente tem uma imagem que existe por conta própria – pode se manter como um filme por conta própria. De fato, acredito que estava no primeiro trailer.

Mas aquela imagem solta é uma coisa, e como e o que ela é dentro do mundo do filme de Stanley Kubrick é outra coisa, novamente. O mesmo vale para cada um dos exemplos que mencionei acima, todos que têm sido exerdados em incontáveis clipes. Tão artisticamente unidos quantos alguns destes clipes são, os acho desconcertantes, porque eles usualmente amontam em uma série oficial de “grandes momentos” tirados de seus contextos.

É também importante lembrar que a maioria destas imagens são verdadeiras sequências de imagens: Peter O’Toole soprando o fósforo seguido pelo sol se levantando sobre o deserto, o carrinho de bebê descendo as escadas no meio do caos e brutalidade do ataque dos Cossacos. E para além daí, cada imagem cinética separada é inclusa de uma sucessão de quadros fixos [still frames] que criam a impressão de movimento. São registros de instantes no tempo. Mas no momento em que se põe eles unidos, algo a mais acontece. Toda vez que volto para a sala de edição, sinto da maravilha disso. Uma imagem se junta a outra imagem, e um terceiro evento fantasma acontece na olho da mente [in the mind’s eye] – talvez uma imagem, talvez um pensamento, talvez uma sensação. Alguma coisa ocorre, algo de absolutamente único a esta particular combinação ou colisão de imagens em movimento. E se você tira um quadro ou adiciona algumas, a imagem na olho da mente [mind’s eye] muda. É uma maravilha para mim, e estou longe de estar sozinho. Sergei Eisenstein falou sobre isso num nível teórico, e o cineasta tcheco František Vlácil discute numa entrevista incluída na edição da Criterion de seu grande épico medieval Marketa Lazarová (1967). O crítico de cinema Manny Farber entendeu isto como elementar à arte em geral – isto que ele chamou em seus escritos de espaço negativo [Negative Space]. Este “princípio”, se assim você poderia chamá-lo, somente é aplicável à justaposição de palavras em poesia ou formas e cores em pintura. Isto é, penso, fundamental para a arte do cinema. isto é onde o ato de criação encontra o ato de ver e engajar, onde a vida comum do cineasta e do espectador existe, naqueles intervalos de tempo entre as imagens filmadas que duram uma fração de segundo, mas que pode ser vasta e sem fim. É aqui onde bons filmes ganham vida como algo mais que uma sucessão de belas composições de representações de roteiros. Isto é fazer cinema [film-making]. Poderia esta “imagem fantasma” existir para espectadores casuais sem a sabedoria de como os filmes são postos juntos? Acredito que sim. Não sei como ler música e nem a maioria das pessoas que conheço, mas todos nós “sentimos” a progressão de um acorde para outro em música que nos afeta, e por implicação algum tipo de consciência [awareness] de que uma diferente progressão poderia ser uma diferente experiência.

Na edição de 4 de Janeiro da TLS, houve uma crítica de meu filme mais recente, uma adaptação da novela de Shūsaku Endō, Silêncio. A crítica, escrita por Adam Mars-Jones, não foi completamente positiva, mas a achei pensativa e, pela maior parte, cuidadosamente considerada. Haviam, contudo, dois pontos que problematizei: um erro factual e uma série de afirmações sobre cinema. Escrevi uma carta para a TLS em resposta a ambos os pontos. Quando o Editor me notificou de que a carta seria publicada (em Março de 2017), ele me perguntou se eu não estaria interessado em escrever um texto em que poderia elaborar minha resposta aos pensamentos do senhor Mars-Jones sobre a arte do cinema. Decidi tomar a proposta do senhor Abell.

Ao longo dos anos, cresci frequentemente vendo o cinema ser dispensado como uma forma de arte por uma variedade de razões: manchada por considerações comerciais; não pode ser uma arte porque há muitas pessoas envolvidas em sua criação; é inferior às outras formas de arte porque “não deixa nada para a imaginação” e simplesmente solta um feitiço temporário sobre o espectador [viewer] (o mesmo nunca é dito a respeito do teatro, ou da dança, ou da ópera, cada uma delas que requer do espectador a experimentar a obra dentro de um determinado período de tempo). Estranhamente o suficiente, me encontrei em muitas situações em que estas crenças são dadas como certas, e onde se assume que até mesmo eu, em meu coração dos corações [in my heart of hearts], deveria concordar.

Não quero implicar que o senhor Mars-Jones aceite todas estes posicionamentos elencados acima. Contudo, ele aparenta ter uma opinião sobre o cinema que é mais ou menos em simpatia com tais ásperas assertivas. “Mesmo o mais implacável dos livros filtra difusamente na vida do leitor”, ele escreve, “enquanto um filme suspende a vida ao longo de sua duração”. Sei por um fato que isto não é verdade, baseado em minha própria experiência. Antes de tudo, parece para mim que tudo o que queremos é nos render para a arte, para viver dentro de certo filme ou pintura ou dança. A questão de como uma obra de arte é absorvida temporalmente, seja permanecendo de pé em frente a ela numa galeria por uma questão de minutos, lendo ao longo de uma semana, ou sentando no escuro teatro e assistindo projetada numa tela por duas horas, é simplesmente uma condição, uma circunstância, um fato. Então sim – quando realmente estou assistindo a um filme do começo ao fim, não vou parar para fazer um telefonema e então começar de novo. Por outro lado, não vou deixar o filme se sobrepor a minha existência. Assisto, experimento, e ao longo do caminho vou vendo ecos de minha própria experiência iluminada pelo filme e iluminando-o de volta. Estou interagindo com o filme em muitos modos, grandes ou pequenos. Nem mesmo uma vez sentido que apenas tinha sentado ali e deixado o filme me lavar como uma onda da maré, e então retornei aos meus sentidos quando as luzes voltaram. A concepção senhor Mars-Jones sobre a experiência de assistir a um filme parece ser bem diferente de minha própria. Para mim, sempre foi uma fonte de excitação e enriquecimento. Estou certo de que o mesmo pode ser dito de muitos de meus companheiros cineastas.

“Em um livro”, escrever o senhor Mars-Jones, “o leitor e o escritos colaboram para produzir imagens, enquanto o diretor entrega-as prontas”. Discordo. Os melhores cineastas, como os melhores novelistas e poetas, estão tentando criar uma comunhão com o espectador. Não estão tentando seduzi-los ou ultrapassá-los, mas, penso, para engajar com eles num nível mais íntimo possível. O espectador “colabora” com o cineasta, ou o pintor. Duas observações da “Madonna and Child Enthroned with Saints”, de Raphael nunca serão as mesmas. O mesmo é verdade para as leituras da Divina comédia ou Middlemarch, ou visionamentos de Coronel Blimp – vida e morte ou 2001: uma odisseia no espaço. Retornarmos a diferentes momentos de nossas vidas e vemos coisas diferentes.

Também discordo com a conexão do senhor Mars-Jones de que qualquer adaptação de uma novela em filme pode apenas resultar em “distorção” ou “exagero geral”. Claro, em um sentido muito importante, ele está correndo. Alfred Hitchcock certa feita disse a François Truffaut de que apesar de sua admiração por Crime e castigo, ele nunca poderia sonhar com fazer um filme sobre ele, porque para fazê-lo precisaria filmar cada páginas (em certo sentido, foi isto que Eric von Stroheim tentou fazer quando adaptou a novela de Frank Norris, McTeague como Ouro e maldição). Mas às vezes, a ideia é pegar os elementos de uma novela e transformá-los numa obra separada (como Hitchcock fez com o livro de Patricia Highsmith, Pacto sinistro). Ou, para pegar os elementos cinemáticos de uma novela e criar um filme a partir deles (suponho que seja o caso com certas adaptações das novelas de Raymond Chandler). E alguns cineastas realmente tentaram traduzir uma novela em sons e imagens, criar um equivalente da experiência artística. Em geral, eu diria que a maior parte de nós responde ao que lemos e no processo tenta criar algo que tenha vida própria separada da novela fonte.

Como disse, achei a crítica do senhor Mars-Jones considerada [thoughtful], e não quero questionar seus posicionamentos sobre meu filme. Mas enquanto um cineasta em trabalho, quero defender a forma de arte a qual devotei a melhor parte de minha vida, e que tem me dado tanto.


sexta-feira, 21 de abril de 2017

O cinema de Asghar Farhadi habitado por Taraneh Alidoosti


Depois de ter assistido O apartamento, novo filme de Asghar Farhadi, busquei os outros 7 longas realizados pelo cineasta iraniano. O que, no fim das contas, me chamou muita atenção não foi a competência do diretor, e sim uma de suas atrizes recorrentes: Taraneh Alidoosti (ou Alidousti).

Ela participa de 4 de seus filmes: Bela Cidade, Fogos de quarta-feira, Procurando Elly e O apartamento. Por meio dessa maratona foi possível ver não só a evolução de Farhadi – cineasta que mantém sua regularidade, e que toma pulso firme a cada novo filme (ainda que, em minha opinião, Procurando Elly permaneça sendo sua maior obra) –, como também de Taraneh Alidoosti.

No primeiro filme em que ela aparece, Bela cidade, tinha apenas 19 anos. Ainda muito jovem, um tanto imatura, mas que já sabia trabalhar a sua presença em cena. É em suas mãos que Farhadi deixa o desfecho do filme. Enquanto soa a campainha, ela permanece abaixada no quarto, fumando um cigarro. Ela não pode aparecer para seu amado porque ele deve se casar com outra para salvar seu irmão da morte. Um drama pesado, que a atriz consegue manter com seu olhar: ela olha para a porta com desolação, não pode sair porque sabe que o que sente pelo rapaz a bater à sua porta não é a coisa certa a se fazer. Num mesmo filme o sorriso juvenil da garota é ocultado pelo olhar da mulher experiente.

No segundo, Fogos de quarta-feira, ela é a faxineira abelhuda e linguaruda, que se mete no problema conjugal dos patrões sem saber o complemento. Mas neste caso ela funciona como uma extensão do espectador: enquanto nós não podemos nos meter no caso, ela lá está e age. Depois de perceber que um de seus comentários à esposa estava equivocado, ela retorna à porta do apartamento. A esposa, que acreditava que seu marido a traía com a vizinha do prédio, abre a porta. Nada é dito porque o marido logo aparece. Mas o olhar da garota intrometida diz o que não podia ser verbalizado. A presença revela o que a esposa tinha apenas enquanto desconfiança.

O terceiro filme, Procurando Elly, em que ela é a personagem título, este seu olhar misto de curiosidade e desencantamento serve a Farhadi para mostrar uma personagem que não queria estar ali, ou melhor, que transmite dúvidas de se deveria estar ali. Quando ela desaparece, no meio das férias, os amigos suspeitando de que ela foi levada pela maré alta, permanece em nossa mente a imagem daquela moça que estava dividida, daquele olhar desolado que ela já apresentava em Bela cidade ao não poder ver o amado, e em Fogos de quarta-feira quando a patroa lhe havia tomado véu que permitia sua saída à rua (não podia ver o noivo sem estar em sua posse). Taraneh Alidoosti desta vez permanece em tela por apenas um terço do filme, e ainda assim a sua imagem encontra-se em todo o resto da película. Antes de desaparecer, uma das mulheres que dividem a casa de praia pede para que ela olhe as crianças. Ela ali não queria estar. O olhar que ela dirige à amiga que vai à cidade e não quer levá-la junto para comprar as passagens de volta para casa nos persegue pelo resto do filme.

No mais recente filme desta colaboração diretor e atriz, O apartamento, uma cena que passa despercebida, ou que poderia ser considerada menor, é a que mais me chamou atenção a respeito da atriz. Depois da invasão ao apartamento, e de ser agredida pelo invasor, sua personagem sofre com medo de ficar sozinha. A certo momento, sai à varanda do apartamento, e fica encostada à parede, tomando sol. De dentro do apartamento sai o marido, que abre a porta e fala com ela. Ela se assusta, de leve, não menciona o susto. Este ato discreto é um belo toque para a composição psicológica da personagem. Uma figura abalada que qualquer distúrbio a perturba.

Taraneh Alidoosti possui essa competência extraordinária para uma atriz de cinema: a capacidade de preencher a imagem com significados profundos. Com sentimentos que não poderiam ser expressos, e que são sentidos pelo espectador como reflexo. Mais que isso: preencher a imagem com vida. É a atriz que preenche o que antes estava vazio. Que sabe trazer um problema do passado para um momento presente (o telefonema que ela não atende no carro, ao conversar com o amigo de Sepideh, em Procurando Elly).