quarta-feira, 15 de junho de 2016

Entrevista com Luis Buñuel

Por André Bazin e Jacques Doniol-Valcroze


Tomamos conhecimento de Luis Buñuel, com quem mantivemos contato por muito tempo, no ultimo Festival de Cannes. Durante estas manifestações, algumas de suas páginas persistiam cotidianamente a falar de sua “máscara cruel”, repetindo sem se cansar que seu mote preferido é o adjetivo “feroz”. Nada se saberia mais longe da realidade. Maciço, levemente encurvado, Buñuel é algo próximo de um touro repentinamente iluminado pelas luzes da arena. Sua leve surdez é um acréscimo à impressão de solidão de sua personagem; mais leve é a barreira a transpor para encontrar o homem: doce, calmo, terno, reservado, incapaz constitucionalmente da menor concessão, da menor hipocrisia. Além disso, a entrevista que se segue é seu melhor retrato. Duas coisas o definem bem, que tanto podem definir este espanhol misterioso, selvagem e pudico: seu olhar luminoso de entomologista e a fórmula que há em alguma parte desta entrevista a respeito de Robinson e de Sexta-Feira: “eles se encontram orgulhosos como homens”.

André Bazin – Caro Luis Buñuel, as leituras em francês que você perdeu de ver depois de L’age d’or e Terre sans pain, e surpreendido por encontrá-lo em 1951 em um filme mexicano, seria ótimo se você pudesse contar brevemente vossa vida profissional depois dos anos de 1930.
Luis Buñuel – Em 1930, depois de L’age D’or, parti para Hollywood. Fui contratado pela Metro-Goldwin-Mayer.
André Bazin – Por conta de L’age d’or?
Luis Buñuel – Sim, por conta de L’age d’or. A Metro viu o filme em Paris e contratou a atriz do filme, Lia Lys. Depois ela me propôs ir à Hollywood com um contrato. Mas recusei. No fundo, não me interessava em fazer filme naquelas condições. Em Paris, era livre para fazer o filme que queria com amigos que me davam o dinheiro para tanto. Então, eles me contrataram como “observador” para passar seis meses “observando” como se faziam filmes por lá, do roteiro à montagem. Encontrei Claude Autant-Lara... Posso dizer tudo que penso?
André Bazin – Claro, estamos aqui para isso.
Luis Buñuel – É uma escrita automática! [...] Então encontrei Claude Autant-Lara que estava contratado para as versões francesas. Ao primeiro dia, o supervisor observou meu contrato e disse: “É bastante curioso este contrato, mas enfim... por onde quer começar?: o estúdio, o roteiro, a montagem?”. Escolhi o estúdio. Então ele me disse: “no Stage 24 há Greta Garbo trabalhando, você quer ir observar por um mês...”. Fui e na entrada vi Greta Garbo se maquiando. Ela me olhou com o canto do olho, se perguntando quem era este estrangeiro, pois ela disse qualquer coisa em uma linguagem incompreensível (era inglês) – na época só sabia dizer: bom dia -  e fez um gesto a um tipo que me empurrou para a porta. A partir desse dia ia todos os sábados ao meio-dia cobrar meus pagamentos para que não mais se ocupassem comigo. Ao fim de três meses neste regime, encontrei o supervisor que me mandou assistir o ensaio de Lili Damita – lembra de Lili Damita? – e ele me disse: “Você é espanhol?”, disse, “Sim, mas também sou um pouco francês porque trabalhava em Paris”. De todo modo, respondeu o supervisor, o senhor Thalberg pede para que você vá assistir a um filme de Lili Damita. Respondi, “Diga ao senhor Thalberg” (que era o patrão na Metro)... posso dizer o que disse a ele?
Jacques Doniol-Valcroze – Naturalmente.
Luis Buñuel – Disse a ele que não tinha tempo a perder escutando putas. Então terminou. Um mês mais tarde, cancelei meu contrato – ainda faltavam dois meses para o final. Voltei para a França, e me pagaram a viagem de volta e um mês ao invés de dois. É tudo que fiz em Hollywood.
André Bazin – Você fez sua estreia em França em 31?
Luis Buñuel – Sim, exatamente em 31 de abril. Quando aderi à Republica Espanhola. Permaneci em Paris por dois dias, depois peguei emprestado dinheiro para ir de Paris a Madri. Depois voltei para Paris. Tinha lido qualquer coisa de Maurice Legendre, que havia se tornado diretor do Instituto Francês em Madri, a respeito da vida de alguns grupos humanos deixados para trás. Era uma teses de doutorado de 1.200 páginas, um estudo completo e minucioso deste tipo de vida... Este livro me transtornou e eu pensei num filme. Eu tinha um amigo trabalhador espanhol, chamado Acin, que me disse: “Se um dia eu ganhar na loteria, pagarei teu filme”. Três meses depois, ele ganhou na loteria. Mas ele era anarquista e seus camaradas anarquistas pretendiam fazê-lo repartir o dinheiro. Enfim, ele conseguiu segurar uma boa quantia e me deu 20.000 pesetas. Não era o Peru, mas deu para pagar a viagem de Pierre Unick, Elie Lotar e a minha. Pierre Unick, aliás, tinha sido pago pela revista Vogue onde ele publicou uma série de reportagens, muito interessante, que apareceu em três números.
André Bazin – Não sei onde tinha ouvido dizer que Los Hurdes foi um filme comandado pelo governo espanhol para fins sociais e educativos.
Luis Buñuel – De modo algum. Ao contrário. Ele foi proibido pela República Espanhola como desonrando a Espanha e denegrindo os espanhóis. Os oficiais ficaram furiosos e demandaram às embaixadas que o filme nem mesmo fosse exibido no estrangeiro, por ser injurioso à Espanha. Assim, ele não foi projetado em França antes de 1937, em plena guerra da Espanha.
André Bazin – De quem é o comentário?
Luis Buñuel – De Pierre Unick. Fizemos em conjunto.
André Bazin – Quem deu a ideia da música?
Luis Buñuel – É minha, tinha ideias especiais acerca da música no cinema.
Doniol-Valcroze – Gremillon não estava lá para alguma coisa?
Luis Buñuel – Não, conheci Gremillon quatro anos mais tarde, na Espanha, quando o convidei a vir como diretor. Eu era produtor. Ele foi por quase nada, porque a Espanha o agradava.
André Bazin – Certas cenas foram cortadas pela censura. As brigas de galos, em particular.
Luis Buñuel – Sim. Quando o filme foi lançado na França, em 37 creio eu, foram feitos grandes protestos em jornais da Saboia, dizendo que o turismo em Grenoble estava ameaçado porque o comentário, à estreia do filme, indicava que certas localidades, na Europa, na Checoslováquia, na Saboia francesa e na Espanha, onde grupos humanos estavam presos atrás da civilização... Então a Saboia protestou energicamente... Aquela Mme. Picabia que contou que na Saboia há uma vila como a de Los Hurdes, enterrada na neve caída por seis meses, onde o pão é quase desconhecido e a consanguinidade quase total.
André Bazin­ – Que relação você faz entre um filme como Los Hurdes e sua obra anterior. Como você enxerga a relação entre o surrealismo e o achado documental?
Luis Buñuel – Vejo uma grande relação. Fiz Los Hurdes porque tinha uma visão surrealista, e porque me interessava pelo problema do homem. Vejo a realidade de modo diferente daquela que havia visto antes do surrealismo. Estava certo disso e Pierre Unick também.
André Bazin – Você disse que foi produtor na Espanha em 1934. Você permanece na Espanha depois de Los Hurdes para trabalhar com cinema?
Luis Buñuel – Depois de Los Hurdes, trabalhei em Paris. Não queria mais fazer filmes. Tinha os meios materiais para viver graças a minha família, mas ficava um pouco envergonhado em nada fazer. Então trabalhei para a Paramout, em Paris, por dois anos, com dublagem, porque tinha sido enviado para a Espanha pela Warner Bros. para dirigir suas coproduções. Para além disso, também fiz dublagem. Porque tinha encontrado um amigo, Urgoiti, com quem comecei a fazer filmes como produtor. Fiz quatro sem interesse e por isso esqueci os títulos. Depois surgiu a guerra na Espanha. Pensei que o mundo havia acabado, que tinha de encontrar algo de melhor para fazer que filmes; fui posto a serviço do Governo Republicano em Paris que me enviou em 38 a Hollywood em “missão diplomática” para supervisionar, como “technical adviser”, dois filmes que deveriam fazer sobre a República Espanhola. Chegando lá, fiquei surpreso em encontrar o fim da guerra e me encontrei na América completamente abandonado e sem trabalho. Graças à senhorita Iris Barry, consegui um emprego no Museu de Arte Moderna. Achei que faria grandes coisas, mas ao final era apenas trabalho burocrático. Eu tinha quinze ou vinte empregados. Me ocupava das versões para América Latina. Permaneci por lá por quatro anos. Em 1942, fui obrigado a pedir demissão porque era o autor de L’age d’or. A senhorita Iris Barry aceitou minha demissão, aos prantos. Foi no dia de Mers el Kebir; a atmosfera era dramática. Os jornalistas vieram me ver, mas recusei todas as entrevistas, acreditei que aquele momento não era importante para que Senhor Buñuel esteja dentro ou fora do Museu. Estava bastante triste, sem economias e passei como pude os dias seguintes, mais mal que bem. Porque o Gênio americano me colocou como o speaker para os filmes do exército americano. Falei com “minha bela voz” por quinze ou vinte filmes sobre soldagem, explosivos, peças de avião, brevemente  para os filmes técnicos que foram feitos naquele momento.
André Bazin – Você fala tão bem inglês?
Luis Buñuel – Não, não, era sempre para as versões espanholas.
Doniol-Valcroze – Vossa saída do Museu teve relação direta com o livro de Dali? Foi por ele que descobrimos que você tinha feito L’age d’or.
Luis Buñuel – Sim.
André Bazin – Você depois trabalhou para o Gênio americano?
Luis Buñuel – Sim, em Nova York; porque fui contratado pela Warner Bros. que havia planejado a produção de versões espanholas. É bom dizer que sou preguiçoso, mas quando trabalho, trabalho bem. Fui então posto como produtor e era bem pago. Mas esta produção de versões espanholas jamais começou e eu mais uma vez fui contratado como especialista em dublagem.
Doniol-Valcroze – Em que ano estamos?
Luis Buñuel – Passei dois anos em Hollywood, de 44 a 46 e como estava relativamente bem pago, pude poupar o suficiente para realizar o meu ideal: não fazer nada. Apesar disso, já não tinha mais dinheiro em 1947, quando Denise Tual me fez vir ao México. Ela queria que eu fizesse um filme na França. Estava encantado, acreditei ver o céu se abrir. Era A casa de Bernarda Alta, mas esta não podia ser feita porque a família de Garcia Lorca havia vendido os direitos. No entanto, no México encontrei Oscar Dancigers que me propôs fazer um filme. Eu fiz e depois disso permaneci no México.
André Bazin – Qual era o filme?
Luis Buñuel – Um filme de canções. Cantavam-se tangos e não sei mais o quê... muito, em todo caso. Se chamava Gran Casino. Era uma história que se passava em Tampico, na época petrolífera. O roteiro não era ruim, mas havia nele os dois maiores cantores mexicano e argentina, Georges Negrette e Libertat Lamarque. Então os fiz cantar o tempo todo. Era uma competição, um campeonato. O filme não foi muito bem sucedido e fiquei dois anos sem fazer nada.
Doniol-Valcroze – Oscar Dancigers foi sempre seu produtor por lá?
Luis Buñuel – Sim. É um homem a quem devo muito.
André Bazin – Convencionou-se em dizer que no México você trabalhou em condições bem “comerciais”. A produção é feita de modo a obrigar que sejam feitos melodramas ou filmes fáceis?
Luis Buñuel – Sim e estou sempre submisso.
André Bazin – Mas e em Los Olvidados?
Luis BuñuelLos Olvidados foi feito diferente. Depois da falha de Gran Casino e dois anos de inanição, Dancigers manda para mim uma proposta de tema de filme para crianças. Propus timidamente o roteiro de Los Olvidados, que fiz com meu amigo Luis Alcoriza. Ele amou e me disse para trabalhar. Entretempos se apresentava a ocasião de fazer uma comédia comercial e Dancigers me propunha a fazê-la primeiro, uma troca que me asseguraria certa liberdade em Los Olvidados. Fiz então em dezesseis dias Gran Cavalera, que foi um sucesso formidável e que me pôs em Los Olvidados. Evidentemente, Dancigers mandou remover muitas coisas que eu queria colocar no filme, mas me deu certa liberdade.
André Bazin – Que gênero de coisas?
Luis Buñuel – Tudo o que tirei tinha um interesse puramente simbólico. Queria nas cenas mais realistas introduzir elementos loucos, completamente disparatados. Por exemplo, quando Jaibo vai bater e matar o outro garoto, no movimento de câmera queria, ao longe, a carcaça de um grande edifício de onze andares em construção e queria colocar uma orquestra de cem músicos. Estava certo da passagem, ainda que confusamente. Queria adicionar vários elementos deste gênero, mas me foi proibida.
André Bazin – Isto que você nos revela é muito importante, sobretudo para medir onde Los Olvidados pode passar por um filme que tende tanto para o social quanto ao pedagógico, se inscrevendo na tradição de Chémin de la vie, de De hommes sont nés ou de Prison sans barreux. Isto que você vem nos dizer poderia parecer ir de encontro ao realismo social que está mais presente em outros lugares a sublinhar no filme. É importante que você precise em que medida este realismo é um requisito ou se ele não está lá, ao contrário, para fazer algum tipo de modificação na mensagem poética do filme.
Luis Buñuel – Para mim, Los Olvidados é efetivamente um filme de luta social. Porque para creia simplesmente honesto comigo mesmo, devo fazer uma obra do tipo social. Sei que vou nesta direção. Além de que não queria de modo algum fazer um filme-tese. Observei coisas que me afetaram e quis transpor ao écran, mas sempre com esta espécie de amor que possuo pelo instintivo e pelo irracional que podem aparecer em tudo. Sempre fui atraído para o lado do desconhecido ou do estranho que me fascina sem que eu saiba o motivo.
Doniol-Valcroze – Você tinha Figueroa como operador [de câmera], mas você sempre o utilizou fora de seu estilo habitual. Em alguns momentos você o impediu de fazer belas imagens?
Luis Buñuel – Naturalmente, senão o filme não prestaria.
Doniol-Valcroze – Ele deveria estar bastante descontente.
Luis Buñeul – Muito descontente. Tinha lido nos Cahiers a história que você tinha contado...
Doniol-Valcroze - ...aquela da pequena nuvem? Ela é verdadeira?
Luis Buñuel – Ela é verdadeira. O que quer dizer que não agi com ele como um ditador que fornece um favor do gênero: “eis aí, meu amigo, o que tanto esperava”, mas o essencial é verdade. Ao fim de onze dias de filmagem, Figueroa perguntou a Dancigers porque foi ele o escolhido para fazer um filme em que não importava o operador em trabalho. Ao que lhe foi respondido: “Porque você é um operador bastante rápido, bastante comercial”. É verdade, Figueroa é extremamente rápido e muito bom. Isso o tranquilizou. Ao começo ele estava muito admirado de poder trabalhar comigo, quase não entrávamos em acordo, mas acredito que ele tenha evoluído bastante e nos tornamos amigos.
André Bazin – E El? Que representa El dentre seus trabalhos no México? Você introduziu intencionalmente o que queríamos ver, como uma espécie de L’age d’or em filigrana em um roteiro voluntariamente pomposo?
Luis Buñuel – De verdade, eu não queria conscientemente seguir ou imitar L’age d’or. O herói de El é um tipo que me interessa como um escaravelho ou um anófele... desde sempre fui um apaixonado por insetos... tenho um lado entomologista. O exame da realidade me interessa bastante. Para El fiz como sempre no México: me propuseram um filme e em vez de aceitar como tal, ensaiei fazer uma contra proposição que, apesar de ser comercial, me parecia mais propícia para exprimir qualquer uma das coisas que me interessam. Este foi o caso de El. Não tinha pensando em L’age d’or. Conscientemente, quis fazer um filme de Amor e de Ciúme. Mas reconheço que são eles jogados sempre pelas mesmas inspirações, pelos mesmos sonhos e de que eu poderia fazer coisas que se assemelhassem a L’age d’or.
Doniol-Valcroze – E a terrível cena onde o marido costura a mulher; os produtores a compreenderam?
Luis Buñuel – Não sei. Nas escolhas precisas dos elementos não há a escolha precisa de imitar Sade, mas é possível que tenha acontecido sem que eu tome ciência. É natural que eu tenha a tendência a ver e pensar uma situação apenas pelo ponto de vista sádico ou sadista que dizem ser neorrealista ou místico. Digo: o que a personagem deve tomar: um revolver?, uma faca?, uma cadeira? Parei de escolher objetos mais inquietantes. É tudo.
Doniol-Valcroze – E, ao fim, quando o herói se torna monge e sai ziguezagueando pelo caminho, ao quê corresponde ela para você?
Luis Buñuel – A nada. Me faz rir bastante vê-lo partir em ziguezague. Não corresponde a nada, mas me apraz.
André Bazin – Se Los Olvidados foi um filme relativamente livre, El é então um filme de comando no qual introduzistes – conscientemente ou não – muitas coisas para você. Mas você acha que Suzanna também, por exemplo, ou Subida al cielo são pequenos filmes comerciais onde você introduz, de tempos em tempos, qualquer coisa de pessoal. Para nós, eles possuem mais importância do que você os credita e também descobrimos riquezas apreciáveis. São eles, para você, apenas trabalhos comerciais?
Luis Buñuel – Não. Meço pelo prazer que tive ao fazê-los. Suzanna teria sido mais interessante se eu pudesse ter feito outro final. Foi um filme que fiz em vinte dias... mas o tempo não conta... cinco meses ou dois dias, pouco importa, o que conta é o conteúdo, a expressão. Subida al cielo, gostei muito. Adorei os momentos em que nada acontece, o homem que diz: “me dê um fósforo”. Esse gênero de coisas me interessa muito. “Me dê um fósforo”, me interessa enormemente... ou “quer comer?” ou “que horas são?”. Fiz Subida al cielo um pouco neste sentido.
Doniol-Valcroze – Qual é a ordem cronológica de seus filmes depois de Los Olvidados?
Luis Buñuel – Depois de Los Olvidados, fiz Suzanna, depois outro filme que nunca virá para cá e do qual não lembro nem sequer o título. Vocês sabem, estes filmes que fiz no México são enviados sem que me deem aviso. É o governo que decide, ou um arranjo entre os produtores. Eu mesmo nunca quis enviar filmes para festivais ou outro lugar qualquer. Depois fiz Subida al cielo e depois El bruto, outro filme bem rápido: dezoito dias. El bruto poderia ter sido bom, o roteiro meu e de Alcoriza era muito interessante, mas sempre me faziam mudar, de alto a baixo. Agora é um filme qualquer, sem nada de extraordinário.
Doniol-Valcroze – Você filmou Robinson Crusoé?
Luis Buñuel – Depois de El bruto fiz quatro filmes.
André Bazin e Doniol-Valcroze – Ah!
Luis BuñuelRobinson Crusoé, O morro dos ventos uivantes, La ilusíón viaja en tranvía... uma história de roubo de um bonde por dois operários... eles partem de um café e cruzam a cidade com o bonde roubado... há um rolo muito interessante, enfim, o quarto filme se chama Le fleuve de la mort: é sobre a morte mexicana, esta “morte fácil”... você sabe que quando um homem morre, há pessoas que fumam e que bebem pequenos copos de álcool... a vida é pouca coisa, a morta não conta. No filme há sete mortes, quatro enterros e já não sei quantas velas fúnebres.
André BazinRobinson Crusoé é um filme importante para você?
Luis BuñuelRobinson, como os outros, me foi proposto. Não gostava do romance, mas gostava da personagem e aceitei porque há nele algo de puro. Primeiramente porque é o homem em face da natureza, sem romance, sem cenas de amor fáceis, sem folhetim nem intriga complicada. É simplesmente um tipo que chega, se encontra em face da natureza e deve se alimentar. Então o tema me agradava, aceitei e tentei fazer coisas que pudessem ser interessantes. Acredito que ele ainda permaneça porque cortaram passagens distantemente surrealistas e que lhes pareciam incompreensíveis. O filme começa com o desembarque de Robinson: as ondas atirando um homem à ilha, é a primeira imagem. No sétimo rolo ele permanece em uma solidão muito grande, sozinho com seu cachorro. Em seguida ele encontra Sexta-Feira, mas é um canibal e não pode conversar com ele. Passam ainda três rolos a tentar se compreender... e por fim os piratas levam Robinson. Fiz o filme como pude, querendo mostrar sobretudo a solidão do homem, a ansiedade do homem sem a sociedade humana. Quis também tratar do tema do amor... queria dizer que faltam amor e amizade: o homem sem a sociedade do homem ou da mulher. Apesar de tudo, mesmo com os cortes, a relação entre Robinson e Sexta-Feira permanece clara: aqueles de raça “superior”, anglo-saxões, com a raça “inferior”, negra. Ao princípio, Robinson estava desconfiado, imbuído da superioridade, mas ao fim chega uma grande fraternidade humana... eles se veem orgulhosos como homens! Espero que esta intenção tenha sido sensível.
André Bazin – E O Morro dos Ventos Uivantes?
Luis Buñuel – Este é muito curioso. É um filme que eu queria filmar à época de L’age d’or. Para os surrealistas era um livro formidável. Acho que foi Georges Sadoul que o traduziu. Amavam o lado de amor louco, amor sobretudo, e naturalmente como eu fazia parte do grupo tinha as mesmas ideias a respeito do amor e achei o romance formidável. Mas não encontrei patrocinador, o filme permaneceu entre meus papeis e Hollywood o fez oito ou nove anos mais tarde. Não pensava mais nele quando Dancigers, que tinha sob contrato Mistral, ator bastante conhecido em Espanha, e outra vedete hispânica, Irasema Diliam, me pediu para fazer um filme cujo cenário não gostei. Então ele me lembrou que lhe disse de minha adaptação de O morro dos ventos uivantes e o mostrei. Ele aceitou. Em realidade, não mais me interessava em fazer este filme e não busquei inovar. É então o filme como o havia pensado em 1930, ou seja um filme envelhecido vinte e quatro anos, mas creio que seja fiel ao espírito de Emily Brontë. É um filme muito duro, sem concessão e que respeita o sentido de amor do romance.
André Bazin – Dadas as condições de produção no México, você tinha que fazer seus filmes bem rápido, não?
Luis Buñuel – Muito rápido. Exceto Robinson. Todos os outros fiz em vinte e cinco dias de filmagem. Para o México, esse não é um tempo excepcional. Há quem faça em menos ainda. É muito raro que no México um filme leve cinco semanas e somos quatro a poder conceder vinte e quatro ou vinte e cinco.
Doniol-Valcroze – Mesmo Fernandez?
Luis Buñuel – Não, ele é um caso excepcional. O permitem muito mais coisas.
André Bazin – Depois do que nos disse, notei que você guardou algumas conexões com o surrealismo, se não de maneira oficial e ortodoxa, ao menos por inspiração. Você não renega sua formação surrealista, guardando, ao contrário, uma lembrança viva e sempre eficaz.
Luis Buñuel – Não a renego de modo algum. Foi o surrealismo que me revelou que, na vida, há um senso moral que o homem não pode dispensar de segurar. Por ele descobri pela primeira vez que o homem não era livre. Acreditava na liberdade total do homem, e vi sob o surrealismo uma disciplina a seguir. Foi uma grande lição para minha vida e também um passo maravilhoso e poético. Não mais faço parte do grupo há muito tempo.
André Bazin – Você têm dito constantemente que era preguiçoso por uma parte e, de outra, que faliu em diversas ocasiões e de não mais fazer cinema. Nos disse igualmente, em outras conversas, de que vai pouco ao cinema. Acredito que o Festival de Cannes seja para você uma ocasião excepcional para ver filmes. Quantas vezes você vai ao cinema por ano?
Luis Buñuel – Muito pouco. Não queria exagerar, digamos quatro vezes. Talvez seis, talvez dez, mas na média, quatro.
André Bazin – Nestas condições, faz bem que retenha toda coisa profunda no cinema apesar de sua preguiça, as dificuldades que teve ao fazer filmes e pouco gosto que por eles tenha. O que é então que o faz retornar ao cinema, mais que a qualquer outro trabalho ou a outras formas de expressão como o romance ou a pintura?
Luis Buñuel – Não gosto muito de ir ao cinema, mas adoro o cinema como meio de expressão. Não acho que seja o melhor para mostrar uma realidade que não toquemos com os dedos todos os dias. Pelos livros, pelos jornais, por nossa experiência, conhecemos uma realidade exterior e objetiva. O cinema, por seu próprio mecanismo, nos abre uma janela para a prolongação desta realidade. Minha aspiração como espectador de cinema, é de que o cinema descobre qualquer coisa em mim e isso me acontece raramente. O resto não me agrada, já estou bastante velho. Fico contente da ocasião de poder ver muitos filmes neste Festival [de Cannes]. Vi grandes filmes, mas tudo isso não me diz grande coisa. O cinema descobre bem raramente o que procuro e é por isso que quase não vou nunca. Naturalmente tenho amigos que me indicam filmes que gostam e me obrigam às vezes de ir ver. Foi assim que vi Jeux Interdits, que me abriu uma pequena janela: é um filme admirável. Vi também Portrait of Jenny que gostei bastante e que me abriu uma grande janela. Do ponto de vista profissional, sou imperdoável, deveria conhecer mais filmes, ir todos os dias ao cinema... sou o primeiro a me culpar. No México, quando me mandam fazer uma distribuição, nunca sei o que responder, faltando conhecer os atores. É muito ruim, sei que prefiro ficar na minha a beber uma garrafa de whisky com os amigos, mais do que ir ver um filme.
André Bazin – Você disse um dia, contudo, graças a Denise Tual, que você pôde ver Anges du Péché, de Robert Bresson, e que sua principal lembrança do filme era de uma freira beijando pés.
Luis Buñuel – Ah!, sim, uma bela cena de um belo filme.
André Bazin – Fiquei um pouco surpreso porque esta não é a imagem que me parece a mais característica de Anges du Péché!
Luis Buñuel – Sei o que quer dizer... Praticamente, não sou sadista ou masoquista. Não sou mais que teoricamente e não aceito estes elementos como elementos de luta ou violência. Durante todo filme de Bresson, pressenti uma coisa que anunciava, que me atraía bastante e cuja cena ao fim sem dúvida é como uma eclosão perturbadora. É porque me lembro somente que é o beijo nos pés de uma freira morta. Mas assim dito, não gosto muito de beijo em pé de freira morta, nem aos pés de vacas verdes, nem a pé algum... Mas esta, fazia como aflorar alguns sentimentos ocultos ao longo do filme.
André Bazin – Queríamos ainda pedir precisão quanto às suas ideias sobre a música de filme, e mais precisamente a proposta em Hurdes.
Luis Buñuel – Estive certa vez em Nova York em um congresso da Association of producers of documentary films e eles tinham o mais famoso dos jovens compositores de filmes americanos. Apresentamos Hurdes e um deles, entusiasmado, veio me perguntar como tive a ideia maravilhosa de inserir a música de Brahms. Portanto eu nada tinha inventado, vi simplesmente que ao espírito geral do filme correspondia a música de Brahms. Tinha colocado a Quarta Sinfonia... me lembro, eram quatro discos de Brunswick. Todo mundo ficou impressionado com uma coisa assim simples, quase idiota, porque pesquisam sempre efeitos e complicações. Pessoalmente, não gosto de músicas em filmes, acho um elemento covarde, um tipo de trucagem, salvo em certos casos, naturalmente. Fiquei muito admirado de ver neste festival grandes filmes sem música. Poderia citar três ou quatro onde existem fragmentos de vinte minutos ou mais sem alguma música, por exemplo La Grand Aventure... agora como estou surdo, talvez não tenha compreendido que não tenha a todo momento uma grande orquestra de oitenta músicos, mas não me importo e me prova de todo modo que o silêncio era preferível.
Doniol-Valcroze – Com efeito, La Grand Aventure, praticamente não tem música.
Luis Buñuel – No filme japonês, La porte de l’enfer, a música é igualmente muito especial. Vejo, então, refletida na produção mundial a possibilidade de suprimir frequentemente a música. Ah! O silêncio! É isso que é impressionante! Nada descobri na música, mas instintivamente considero como um elemento parasitário que serve, sobretudo, para inserir valor em cenas que não possuem qualquer interesse cinematográfico. Para O morro dos ventos uivantes, me foi entregue a meu estado de espírito de 1930 e como nesta época era um wagneriano perturbado, coloquei cinquenta minutos de Wagner.
André Bazin – E agora, você tem a esperança de um projeto qualquer que seja derivado de sua vontade própria, digo, de um filme que não lhe seja imposto?
Luis Buñuel – Tenho a ideia de um filme de dois rolos, que farei com uma equipe de amigos, técnicos do México. Algo de bom, creio, mas que não seja comercial e que não possa ser projetado em parte alguma além das cinematecas ou cineclubes, mas não posso ainda falar do tema...

(publicado originalmente em Cahiers du Cinéma, n° 36, de junho de 1954)

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Os primeiros filmes de Stanley Kubrick


Stanley Kubrick ficou famoso por ser um cineasta cuidadoso com detalhes. Este cuidado transformou-se em obsessão, unindo ao imaginário que o cerca as histórias de bastidores que levam até o encontro com a perfeição vista em seus filmes. Kubrick filmava muitas tomadas, dizem. Chegava a filmar cinquenta tomadas até alcançar o que queria. Passava anos a selecionar seu material. Tudo isso é bem conhecido do público que o admira, e em parte o admira exatamente por esta característica.  Mas esta é uma faceta do cineasta conquistada a partir de seus filmes maiores, seus filmes de grande orçamento, especialmente depois de ter conquistado notoriedade com Spartacus.

Neste breve texto, pretendo fazer uma incursão por um Kubrick menos conhecido do público que tanto o admira, desbravar um território fértil: trata-se do nascimento de um grande artista. A sensação que se tem assistindo aos primeiros filmes de Kubrick é a de adentrar o ateliê de um artista e encontrar o material com o qual ele, mais tarde, veio a produzir suas grandes obras. Isso porque suas obras de início de carreira são marcadas por características sensivelmente diferentes daquelas que viriam a caracterizar suas películas mais conhecidas. Eram filmes de baixo orçamento, beirando o amadorismo, e num caso especial sendo amador. O que não significava desordem.

Kubrick deu início à sua vida profissional como fotógrafo para revistas e jornais. O contato com a câmera e a sua potência plástica e expressiva foram logo reconhecidas. É esta capacidade de expressão imagética que se destacam nos primeiros filmes do cineasta.


Antes de qualquer coisa, estabelecerei quais são os filmes que chamo de “primeiro Kubrick”. São eles: Fear and desire, Killer’s Kiss, The Killing, e Paths of Glory. Todos eles realizados ao longo da década de 1950, todos eles produzidos independentemente, tomados pela força de um jovem realizador que enxergava a necessidade de se expressar por meio das imagens em movimento. Vale pontuar que antes destes filmes, Kubrick realizou ainda três curtas-metragens de documentário, por encomenda ou por ideia própria, o que garantiu sua sobrevivência enquanto cineasta.

Já em Fear and Desire, talvez o mais irregular dos filmes de Kubrick e certamente aquele de que ele menos gostava, é possível enxergar a competência do realizador de 2001. Numa floresta, os militares que conseguiram escapar retornam para encontrar aqueles que deixaram para trás. Dificultando sua busca se encontra uma densa neblina cobrindo a floresta. As imagens são fortes: não por conta de uma agressividade mais tarde encontrada em Clockwork Orange, e sim devido ao estado de consciência em que se encontram aquelas personagens (a neblina não só marca a impossibilidade de seu reencontro com os que se perderam, mas também com relação ao presente – a falta de sentido de uma guerra). Mais marcante que a cena da névoa é a imagem em contraluz do soldado Sidney, garoto que perde a lucidez em meio à floresta e que é encontrado no meio do rio, vagando, vivendo como que numa realidade paralela. O rio, caminho de mão única, é a impossibilidade de retornar e concertar o que foi feito no passado. E certamente aquela personagem foi afetada por aquilo que lhe obrigaram fazer. Ela não mais possui uma identidade, daí a contraluz. Tardiamente lhe identificamos, e há algum tempo já o tratávamos como morto. É isso o que a guerra faz.

Colocar suas personagens num cenário narrativo em que elas estejam à beira do que existe de mais primordial, sua existência, parece ser caro a Kubrick. Os filmes de guerra servem muito bem a este propósito. O soldado na guerra vive sempre em luta por aquilo que é primordial, a manutenção de sua vida. Claro que servindo a outros interesses, mas o que o soldado faz num campo de batalha é, acima de tudo, manter-se vivo. E é mantendo-se vivo que atende aos interesses do outro que para lá o mandou. Mas este não é um tema particular dos filmes de guerra, como também do filme noir.


Neste gênero nascido nas telas do cinema estadunidense da década de 1940 – certamente um período obscuro para se viver – o embate pelo básico da vida se mostra cotidiano, nas relações humanas na cidade. E em Killer’s Kiss, Kubrick põe seu espectador em contato com seu protagonista: um boxeador profissional, relativamente bem conhecido pelo que comenta o empregador de uma vizinha que logo diz quem é o rapaz. E que outra profissão mais singular para representar esta batalha cotidiana pela sobrevivência na metrópole que não a de boxeador (que Kubrick já havia acompanhado em uma de suas curtas, Day of the Fight)?

Fazendo a seleção de uma das cenas deste filme, certamente a mais valiosa é aquela que dá desfecho ao filme: a luta do boxeador Davey Gordon com Vincent Rapallo, o homem que raptou a mulher por quem Davey se encontra apaixonado (sua vizinha de janela). Após encontrar o local do cativeiro e conseguir escapar dos capangas de Rapallo, Davey se esconde numa fábrica de manequins para lojas de roupas. Em meio àquele amontoado de bonecos, as duas personagens travam uma luta, com direito ao uso de um machado (mais tarde utensílio utilizado em The Shining). Os corpos são confundidos com os bonecos. Os bonecos são acertados quando se erra o alvo no corpo vivo. A batalha provoca uma reflexão: Davey luta para sobreviver, e agora sua vida corre risco de fato, e em meio àqueles bonecos é como se ele fosse um deles, estivesse constantemente a lutar contra o mundo, numa repetição de seus atos. Tem que lutar por tudo, e tudo é conquistado por meio da luta: o dinheiro que ganha é sobre o ringue, para ganhar a garota, deve impedir seu sequestrador de tê-la. Davey é como um acessório para algo maior.


No mesmo caminho dos filmes noir, está The Killing. Nele, um grupo é formado para assaltar o clube de apostas em corridas de cavalos. É dia de aposta alta e no local haverá muito dinheiro. Mais uma vez a trama de sobrevivência buscando o básico, mas desta vez nem tão explícito assim. Isso porque não há uma luta pela sobrevivência direta, ainda que as personagens se envolvam com o maior dos crimes, inevitavelmente. A grande cena do filme, aquela que mostra a força de um realizador, é a final. Johnny Clay (Sterling Hayden, que viria a trabalhar com Kubrick mais uma vez em Dr. Strangelove), recolhe o dinheiro do assalto e se encontra com sua noiva para juntos partirem em viagem. Todo o dinheiro que conseguiram pegar do jóquei se encontra numa mala. Nervoso com sua fuga, e por não ter conseguido ficar com a bagagem junto a si no avião, Clay observa o carrinho com as malas dos passageiros passando ao longo do asfalto do aeroporto em direção ao avião. Ao desviar de um cachorrinho que invadiu a pista, a mala cai da pilha do carrinho. A mala então se abre e seu conteúdo voa, impulsionada pelas turbinas dos aviões. A imagem é fascinante: o dinheiro escapa da mala e voa, as pilhas que se formaram no chão começam a desaparecer, assim como as notas de dinheiro aparentam desintegrar-se no ar.

O dinheiro é fugaz, como o rio aparenta ser. É uma materialidade imaterial. É algo cujo sentido é dado por quem participa de uma sociedade que lhe dá significado. E esta coisa simples, o monismo ideia-matéria que se encontra numa nota de dinheiro, regra a vida das pessoas. Direciona sonhos e o futuro das pessoas. Diz se devem elas viver ou morrer, se devem permanecer em sua liberdade aparente ou ser presas. No filme de Kubrick, o dinheiro voa para que o crime não tenha seu final feliz. O bandido humanizado, com amigos e uma paixão, que nutre sonhos, não pode ter um final feliz. Clay aceita seu destino de ir para a cadeia. Compreende que a vida é um fluxo, e que o dinheiro que se desfaz no ar era parte de uma empreitada muito além de suas capacidades. Chegou perto do sucesso. Mas por mais que a narrativa de The Killing retorne para mostrar o que as personagens faziam em horas passadas, o que acontece não pode ser modificado. Como no rio de Fear and Desire.
Paths of Glory leva Kubrick de volta aos filmes de guerra. Desta vez não mais com um roteiro original, e sim com um livro, como havia feito antes em The Killing e como voltou a fazer em todos os filmes a seguir. Não mais uma produção de baixo orçamento, Paths of Glory possibilitou a Kubrick ser Kubrick: a possibilidade de alcançar os resultados imaginados, de realizar planejamento cuidadoso, de ter alguns grandiosos cenários para poder filmar. Filmado na Europa, a obra nos apresenta um batalhão francês em plena I Guerra Mundial. O que mais chama atenção neste filme são as muitas memoráveis imagens a respeito da humanização em plena guerra. A garota a cantar ao final numa língua que os soldados não entendem, mas por ser a língua universal da música, todos são embalados pela melodia; o assassínio dos soldados condenados; as cenas de batalha.


Dentre as cenas no campo de batalha destaco uma: três militares são selecionados para atravessar o campo durante a noite e espiar o campo inimigo, que deveria ser conquistado por eles. Como insetos eles rastejam por logo espaço, subindo e descendo buracos de bombas, escondendo-se para não ser vistos pelo inimigo à espreita. São animais, antes de tudo. Agem por instinto. Não à toa, o nome do território a ser conquistado é o “formigueiro”, ou “colina das formigas”. Os militares atuam como insetos a rastejar pelo chão. E são como animais que eles agem, institivamente, buscando a salvação por meio do que há de mais primal quando mandados a uma situação brusca de sobrevivência. E é num susto desses que o sargento posto para coordenar a inspeção do território, atira uma granada que termina por matar seu companheiro de vigia. Ele não o sabia, agiu animalescamente. É o que fazem os humanos quando atiçados ao extremo, quando postos em situações que lhes cobram seu máximo. O limite da sobrevivência. Tópico que Kubrick abordou em todos seus filmes até então, chegando ao seu ápice com este – que vai um pouco além, caracterizando-se obra-prima.


O que une a cinematografia de Kubrick é a descoberta pelo que há de instintivo no humano. Isto que faz as pessoas agirem, que faz as pessoas reagirem, seu lado animalesco em constante evolução (que não desconecta o humano de seus primórdios). As personagens de Kubrick são postas contra a parede e provocadas. E quando se veem sem mais recursos, tendem a atacar. A arma leva à construção de naves espaciais, mostra 2001, mas também leva ao que há de mais absurdo: o intelecto que cria também destrói. A habilidade do cineasta é exatamente a de saber como mostrar isso em cena. O tom foi encontrado com o tempo: desde a cena exagerada de Sidney na floresta com a prisioneira até os prisioneiros aguardando sua execução há grande diferença. Mas desde os passos iniciais já estava presente o que de essencial se podia ver em sua formulação. Encontrando o que há de primordial no homem, encontra-se também um caminho de melhoramento, e consequente aperfeiçoamento da humanidade. Longe de servir como autoajuda, os filmes de Kubrick trabalham como afirmações. Como dizia Truffaut, e mais tarde Merleau-Ponty: o importante no cinema não é formular ideias, mas mostrar os fatos. E é através dos olhos do artista que surgem os questionamentos.