domingo, 17 de janeiro de 2016

Onde jaz o teu movimento?


1) No filme de Pedro Costa em que acompanhamos os realizadores Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Onde jaz o teu sorriso?, uma cena chama muito atenção. Tudo o que temos no quadro é a tela onde passa o filme sendo montado pelos cineastas. Straub conversa bastante, já Huillet prefere ficar em silêncio pela maior parte do tempo, mexendo na mesa de montagem, avançando e voltando o filme, buscando o ponto certo em que possa fazer o corte. Na cena em questão temos a busca por um sorriso breve. O ator, ou não-ator, do filme dá um breve sorriso antes do começo da cena, entre a saída da claquete de quadro e a pronúncia de sua fala. Huillet vê da primeira vez que passa o filme. Depois volta em busca daquele momento, para que possa inseri-lo em sua obra. Por mais que volte o filme, encontrando até mesmos os quadros marcados para descarte, ela parece não encontrar aquele momento único. Seria a aura benajminiana se abatendo num filme?

O movimento é a característica principal de um filme de cinema. É graças ao movimento que o cinema é chamado de "cinema". E ao realizador o que mais deve ser buscado no momento de criação de seu filme é este movimento. Não qualquer movimento, como a maior parte das pessoas com acesso a uma câmera de filmar podem fazer. Um movimento dotado de algo a mais. Um movimento significativo. Unido de emoção e ideia. Straub, no filme de Pedro Costa, lembra de Chaplin - no meio das muitas histórias que ele conta. Diz ele que o movimento no cinema do cômico inglês, em seus primórdios, podia ser encontrado no olho. Ou melhor, que o movimento começava pelo olho. Curiosa proposição essa de Straub, mas que não deixa de provocar alguns pensamentos. Chaplin raramente fazia close-ups. O que significa que o movimento no quadro começava de modo quase imperceptível. Mas em se tratando de Chaplin, não seria tão imperceptível assim.


2) O movimento começando pelo olho significa que no quadro há um ponto significativo. Um movimento quase encoberto por outros. Como acontece ao início de filme de outro realizador, e que me fez escrever esse texto. A sufragista (Die Suffragette), de Urban Gad, data de 1913. Os letreiros nos deixam bem clara a intenção de construção de uma história de amor, mesmo por trás de seu conteúdo político. Temos um casal apaixonado, que sofre por diversos desencontros. Ela quer conhecer ele, pede aos amigos, que por algum motivo o negam. Numa das cenas, o casal está no mesmo clube, mas não conseguem se encontrar, impedidos pelas multidões de amigos que evitam o contato dos dois. Ela vê algo fora de quadro. Quer ir nessa direção. É impedida pelas mãos que a empurram para cima de uma carruagem. No mesmo plano, auxiliado por uma panorâmica, um homem surge montado num cavalo. A moça já não mais pode ser vista, mas ele, no cavalo, pode vê-la. Move seu animal na direção dela, mas é impedido pelos corpos de conhecidos ao lado. O movimento do cavalo em direção à carruagem não é chamativo, passa quase despercebido, mas está lá.

Em um só plano também é realizada a cena em que a moça protagonista diz a sua mentora que implantou a bomba na casa de seu rival. Ela caminha cabisbaixa por toda extensão do cômodo até chegar próximo à câmera. Todo esse seu caminhar é acompanhado por sua mentora, cada vez mais tensa com as expressões da mulher. No desenvolver da cena o movimento cria o sentimento do arrependimento das personagens em terem chegado a uma atitude tão radical. A mentora busca nos olhos da outra a resposta que o tempo todo esteve gravada em seu gestual, em seu caminhar, nas expressões de sua face.


3) Semelhante construção da cena de Caminhada noite adentro, o filme mais antigo de Murnau a que temos acesso hoje - os demais se perderam. Quando a ex-mulher do médico surge em seu consultório pedindo-lhe um favor para o novo marido, ele nega. Ela se encolhe, chorando. O movimento dele muda completamente em um plano: de seu gestual de homem de força, que demonstra irritação frente ao pedido, torna-se a figura de um homem sensível, que se solidariza pela dor daquela mulher. Sem necessitar de maiores artifícios, Murnau altera o movimento em um plano, alterando também o seu sentido inicial. Se aquele plano inicialmente era utilizado para mostrar a repelência do ex-marido, ele muda radicalmente para mostrar o homem ainda apaixonado.

4) Essa é a natureza do plano-sequência. Não jaz em sua longa duração, e sim em sua mostragem do movimento. Um filme com muitos cortes pode ser repleto de planos-sequência, como podemos notar pelo filme de Staub-Huillet/Pedro Costa. O que importa é o que acontece no interior do quadro. A aparição do sorriso e o seu consequente desaparecimento.

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