sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A mulher daquela noite, de Yasujiro Ozu (That night's wife, 1930)

por: David Bordwell


Para salvar Michiko, sua filha doente em estado crítico, Shuji Hashizume, um artista comercial, rouba um escritório. Enquanto a polícia o persegue, o médico diz à mãe Mayumi que, se Michiko conseguir sobreviver aquela noite, irá melhorar. Shuji pega um táxi e volta para casa. Promete se entregar no dia seguinte se Michiko melhorar. O motorista do táxi entra, agora revelado como o detetive Kagawa, e tenta prender Shuji, mas Mayumi usa a pistola de Shuji para parar o policial. Ela mantém Kagawa coberto durante a noite enquanto Shuji cuida da criança. Contudo, o casal cai no sono e Kagawa se sobrepõe. Ele concorda em esperar até a manhã para prender Shuji. Comovido com o compromisso da família e com o retorno da saúde de Michiko, Kagawa deixa Shuji escapar, mas o pai retorna, incapaz de encarar a vida em fuga. Kagawa conduz Shuji para a prisão.
            Em seu décimo sexto filme, Ozu continua a tratar de temas alheios como ocasião para experimentar padrões estilísticos. A fonte imediata é um conto, “From nine to nine”, publicado em março de 1930 numa edição de Shinseinen, uma revista especializada em ficção de mistério de estilo ocidental. Por trás desta fonte encontram-se dois gêneros hollywoodianos, o thriller de crime e o melodrama familiar. Como nas comédias escolares, e Walk Cheerfully, Ozu testa sua habilidade tomando muitas convenções de gênero seriamente. Ele filma a cena do roubo com suspense e espreme emoção prolongando o momento em que Shuji se põe ao lado da cama de Michiko. Ele cria incerteza a respeito do motorista de táxi, dividindo o conhecimento: um plano em movimento do táxi introduz Shuji; temos o ponto de vista do motorista por meio de seu espelho e assim vemos Shuji acender seu cigarro; depois que Shuji paga a corrida, o plano se mantém no táxi, que não sai do lugar. Ao mesmo tempo, Ozu põe os gêneros em mãos com as citações de pôsteres de Broadway Babies (1929) e Gentleman of the Press (1929) e de etiquetas em inglês como “Two is company, three is a crowd”. Togo Yamamoto, que interpreta o detetive Kagawa, interpretou vilões e gangsteres em filmes em Hollywood nos anos 1920, e os demais atores eram identificados como atores de faroestes. Fazendo de Shuji um artista comercial que pinta sinais e pôsteres, Ozu fundamenta a completa ausência do décor japonês. Não fosse pelo quimono de Mayumi, o filme não teria mise-en-scène reconhecidamente japonesa.


            A abertura oferece, em miniatura, as características formais de That night’s wife. A cena de roubo, com seu corte entra a polícia e o guarda do prédio e o abrupto close-up de um recepcionista de telefone e uma pistola, ecoa o conciso estilo de Underworld (1927) e o filme de Lang Spione (1928). Ainda assim, esta cena convencional é marcada exatamente como convencional pelo como Ozu permanece com a iconografia do thriller para seu próprio bem. A câmera que se move em direção a uma mão pintada na porta, mas esta não será uma pista, não levará a nada. Depois, Shuji liga para o médico para checar o progresso de sua filha, Ozu enquadra o recebedor do telefone em um close-up brilhante digno da Paramount; mas então não há um corte para o médico questionando a conversa interrompida. Algumas vezes, estes icônicos motivos que Ozu padronizará de maneira abstrata. Mãos irão retornar ao longo do filme, e o receptor pendurado do telefone ecoa um arrancado telefone do recebedor durante a entrada de Shuji.
            Ozu também usa o roubo como pretexto para se mover por espaços contíguos e cria padrões inesperados. Quando Shuji empurra o guarda para dentro do escritório, a câmera se move para a esquerda, passando pelo guarda, mostrando dois homens deitados no chão, amarrados e amordaçados, com as pernas de um terceiro homem pendurada no enquadramento da mesa. A principal regra de continuidade de Ozu poderia favorecer cortar para um plano médio do terceiro homem. Ao invés disso, Ozu corta de volta para o ponto inicial da “linha”, o guarda derrubado. Então, ele corta para o plano médio do terceiro homem. De tal forma, assim como do agora frequente plano através-da-linha/plano-reverso, Ozu reescreve Lang e Sternberg, anunciando a subordinação do thriller material a suas estratégias estilísticas brincalhonas.


            De fato, com o desenrolar do filme, a abertura parece ser mero pretexto. Shuji rouba o dinheiro para o remédio de Michiko, mas ele nunca compra nada. Uma vez chegue em casa, o fato de que a noite é crucial para a doença da criança toma precedente, e assim ele se oferece a ir com Kagawa se o policial esperar até a manhã. Dramaturgicamente, o roubo não é mais que um álibi para colocar Shuji e Kagawa juntos no apartamento para uma noite de suspense com Mayumi. Esta função da abertura é anunciada na primeira cena, que é tão oblíqua e enganosa quanto aquela de I flunked, but... Um policial encontra um mendigo dormindo atrás de uma coluna de um prédio e o manda sair dali. Ainda que o episódio sirva como contraponto de longo alcance para a ação solidária de Kagawa no clímax, em termos de narração isto sinaliza  a distorcida função de toda a abertura.
            O estilo característico de Ozu é também evidente na manipulação de outra convenção do thriller. Corte paralelo é raro em qualquer filme de Ozu, mas aqui Ozu o usa para alternar a fuga de Shuji com a paciente vigília de Mayumi a Machiko. Mas ao invés dos rápidos e avançados cortes oferecidos por Lang, este cineasta emprega o corte paralelo como base para uma prolongada transição. Ele sai de um grupo de patrulheiros para chegar a uma série de planos mostrando várias áreas da casa de Hashizume, todas tardando a introdução do médico. A transição seguinte usa princípios não-causais para criar nuançada relação dominante/harmônico. Ao invés de cortar diretamente de Mayumi em casa para Shuji escondendo-se da polícia, Ozu corta de um plano dela para um plano de uma lâmpada pendurada. Este tácito corte em contiguidade é seguido por outro, um corte de um plano de um vaso de planta. Agora, a contiguidade é reforçada não apenas pelo pano de fundo, como também pelas sombras (presumidamente) feitas pela lâmpada. A imagem seguinte que Ozu comprime em duas prévias: uma luz da rua (dominante) brilhando na folhagem. O corte depende da inclusão categórica, assegurando a analogia entre duas luzes e duas plantas. Ozu faz a folhagem dominante do plano seguinte ao apresentar sombras de folhas em um muro baixo. A lógica do corte se assemelha aquela de relacionar a luz refletida em Walk Cheerfully. E o muro, fornece a relação a Shuji, agachado na escuridão. Este corte paralelo, de um modo que não é econômico em padrões clássicos. Mais tarde, Shuji está num táxi e inquieto amarra seus cadarços. Ao invés de cortas diretamente e simplesmente para sua esposa, Ozu insere um plano de um brinquedo da criança num balanço, cujas cordas se assemelham a cadarços, seguidos por um plano adjacente de revistas e então o plano segue pelo chão para encontrar os pés de Mayumi. Como em Walk Cheerfully e I Flunked, but..., Ozu está mais e mais preocupado em habitar o que é normalmente apenas tecido conectivo, para pegar desvios através de espaços contíguos antes de chegar à linha causal.


            De que ambas as transições para o apartamento da família se demore em detalhes do espaço não é fortuito. Depois que Shuji chega em casa, Ozu usa o resto do filme para colocar ele mesmo um problema técnico: como apresentar quarenta e cinco minutos de ação em um único cenário? “Eu realmente quebrei minha cabeça com relação à continuidade nesse”. Como Dreyer em Thou Shalt Honor Thy Wife (1925), e diferente de Hitchcock em Festim Diabólico (1948), Ozu vai evitar estabelecer planos e confiar, ao contrário, nos fósforos, nos planos de entradas e saídas, monumentos espaciais e planos médios de detalhes.
            Como Dreyer, Ozu usará estes artifícios para mostras muros e regiões da área central do apartamento, para que vejamos a ação por mais lados que a continuidade tradicional poderia permitir. Deste modo, o começo apresenta a ação de uma orientação que favoreça a cama da criança e a mesa de jantar. Quando o detetive entra e Mayumi o mantém do lado de fora, a ação desenvolve uma segunda zona, numa área próxima à mesa de pintura de Shuji. A câmera muda sua orientação em acordancia, filmando exatamente da direção oposta. (Ozu tentou esta estratégia em uma cena de Walk Cheerfully, que faz uma pesquisa em 360 graus do apartamento de Kenji). Apesar de o espaço poder ser mapeado, requer maior atenção. As poucas longas tomadas são astutamente desenhadas para excluir regiões cruciais, incitando o espectador a confiar em imensos monumentos tais como a cama, o balanço do brinquedo, a mesa, e mesmo a palha pendendo de uma viga. Em adição, o observador pode ser confundido pela propensão de Ozu em “fraudar” a posição de monumentos e a se recusar ângulos bem demarcados. É preciso comparar dois quase sucessivos planos para ver como a perspectiva muda quase drasticamente. O “mapa cognitivo” do espectador é muito mais acurada num nível plano-a-plano, desde que a maioria dos filmes deixam pistas para regiões contíguas que confiam em linhas de olhos e em entradas em enquadramentos, e estes (como Kuleshov sabia) não nos permite medir o espaço total. Como Dreyer, ou Pudovkin em Storm over Asia, Ozu deixa o espectador construir o espaço consistindo de nós dramáticos com uma área geral.


            Diferente de Dreyer, contudo, Ozu não faz uso de decoração dispensada que isole objetos e figuras que permaneçam de fora. O apartamento de That night’s wife engole o espectador num mar de sinais, ferramentas, trincheiras, e bricabraque. A desordem fornece um contínuo interesse, como Ozu revela aspectos sempre novos do cômodo, e também mantém a geografia do apartamento de alguma forma incerta. Somos introduzidos ao set por meio de uma série de movimentos laterais em close-up que eventualmente se afastam em direção a uma parede de pôsteres para revelar o médico com a criança. Como a loja de pôsteres em Made in USA (1966), de Godard, este apartamento é uma colagem de planos achatados que simplesmente fornecem uma superfície para as figuras, um espaço livre para pistas normais em escala e distância. Propaganda multilíngue, mapas, e grafite fazem deste apartamento uma montagem cubista de detritos da cultura ocidental.
            O confinamento no apartamento também permite a Ozu criar variações em estratégias e elementos exibidos anteriormente. Os rápidos movimento de aproximação e afastamento no episódio do roubo são justapostos abruptamente. Há um bater na porta, o correr do plano no mesmo ritmo, direto do fundo. Ainda mais surpreendente é o rápido mover-se da arma na mão de Kagawa; corte para a mão de Mayumi segurando seu avental, e move-se para trás no mesmo ritmo; corta para um plano longo que segue, tão rápido quanto, em direção a Kagawa. A chocante qualidade destas passagens aumenta a recusa de Ozu em se recusar em parar o movimento de câmera antes de dissolver ou cortas, para que então dois efeitos óticos diametralmente opostos são simplesmente unidos. Ainda assim, eles não são dispositivos isolados como os florescimentos retóricos dos contemporâneos de Ozu. As outras técnicas são exploradas como elementos de desenho perceptual, servindo como um fim para a narrativa (para criar surpresa ou suspense), mas organizados num grau que mostre o padrão de simetria.


            A criação de padrão não é menos enfatizada nas duas transições que emergem durante as cenas no apartamento. Se a porção dos cortes paralelos mostravam disparidades espaciais e de simultaneidade, o propósito narrativo das transições tardias é enfatizada por elipses. Mayumi mantém Kagawa coberto com uma pistola, e Ozu deve pular por longos períodos de tempo. Kagawa olha seu relógio, que lhe mostra 1:30. Fade out. Fade in num relógio que mostra 3:07. Depois de um movimento lateral de uma lâmpada e numa panorâmica para baixo, e um corte para a boneca no balaço, temos um plano de Shuji enchendo o saco de gelo enquanto uma sonolenta Mayumi continua a olhar para Kagawa.
            A segunda transição é mais intricada, sendo um tipo de reprise deslocada da transição da lâmpada/planta na porção inicial do filme.
      1.      Mayumi.
2.      Movimento diagonal da esquerda pelo chão em direção a garrafas e uma mancha escura.
3.      Roupas penduradas. Movimento da esquerda em direção à janela. Luzes claras vindas de fora à medida que chega a aurora.
4.      Uma lâmpada da rua se apaga.
5.      Rua. O leiteiro chega e abre seu carrinho.
6.      O topo de uma cerca. Suas mãos trocam três garrafas vazias por três garrafas novas.
7.      Rua, às 5. O leiteiro coloca as garrafas vazias em seu carrinho e vai embora.
8.      Como fim de 3. Movimento da direita da janela para a roupa pendurada.
9.      Movimento da direita passando pela cortina em direção a uma prateleira com uma lata de tinta pendurada.
10.  Movimento diagonal pela direita, em direção ao chão passando por garrafas e latas.
11.  Movimento para a direita para Mayumi, dormindo. Ela acorda de repente.
A simetria total desta transição, juntamente com suas nuances menores e surpresas, deveria requerer apenas um pequeno comentário. A sequência gira em torno de seis planos, com os planos 5, 7 e 3 3 8 servindo como paralelos imediatos e planos 1 e 11 encaminhando toda a passagem. Ali permanecendo assimetrias também. Plano 2 é paralelo por planos 9 e 10, enquanto o plano 4 (a culminação de uma lâmpada de rua como tema) não tem um parceiro exato na segunda metade. A ambiguidade do corte de 2 para 3 é criada pela questão de se seria a mancha de 2 que viria a perturbar a garrafa sobre ela ou se seria a roupa pendurada revelada no plano 3. Similarmente, o movimento “extra”, número 9, cria seu próprio enigma (o que faz a lata balançar? Kagawa pegando a arma?). O propósito de “leitura” aqui (a luz de esperança, nutrimento interrompido) poderia perder a força da cena. Deixando de lados os dados recalcitrantes (há a roupa e a lata de tinta), estas interpretações desprevenidas negligenciam as transformações de Ozu dos clichês da sinfonia da cidade, o modo como a sequência alcança seu clímax, seus usos de espaços intermediários anteriormente, e acima de tudo o jogo de expectativa e correção, regra e revisão, rigor e de invenção formalmente aberta – um jogo que revela um padrão em progresso. Este padrão é completo apenas quando o plano final, a perspectiva diagonal da rua ensolarada que em sua composição ecoa a rua escura que abria o filme.


(BORDWELL, David. Ozu and the poetics of cinema, p. 206-210)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

André Bazin - Uma grande obra: Umberto D


"A elipse é um processo de narrativa lógica e portanto abstrata; supõe análise e escolha, organiza os fatos conforme o sentido dramático ao qual eles devem se submeter. De Sica e Zavattini procuram, ao contrário, dividir o acontecimento em acontecimentos menores e estes em acontecimentos menores ainda, até o limite de nossa sensibilidade pela duração. Assim, a unidade-acontecimento num filme clássico seria o "despertar da empregada": dois ou três planos breves seriam suficientes para significá-lo. A essa unidade narrativa, De Sica substitui uma sequência de acontecimentos menores: o despertar, a travessia do corredor, a inundação das formigas etc. Observemos, porém, mais um deles. Vemos o fato de moer café se dividir, por sua vez, numa série de momentos autônomos, como o fechar da porta com a ponta do pé esticado. Quando a câmera segue, aproximando-se dela, o movimento da perna, serão as apalpadelas dos dedos dos pés na madeira que se tornarão finalmente o objeto da imagem."

[publicado em O que é o cinema, afinal?, Cosac Naify, tradução: Eloisa Araújo Ribeiro, p. 351-352]

segunda-feira, 25 de julho de 2016

A alma em câmera lenta


Negligenciei voluntariamente ao curso de A queda da casa de Usher todos os efeitos plásticos que poderiam permitir o ultra-cinematográfico. Não procurei – se ouso me exprimir assim tão pretensiosamente – o ultra-drama. Em algum momento do filme, o espectador poderá reconhecer: a câmera lenta. Mas penso que, como eu à primeira projeção, ele se surpreenderá com uma dramaturgia assim tão minuciosa. Porque é a dramaturgia a alma própria do filme, de onde provém seu interesse. Estamos, tão sutilmente como em literatura, próximos de reencontrar o tempo perdido.

Não conheço nada de mais comovente como o retardamento de um rosto fornecendo uma expressão. Toda uma preparação anterior, uma lenta febre, que não se sabe se se compara a uma incubação mórbida, a uma maturidade progressiva ou, mais grosseiramente, a uma gestação. Enfim, todo este esforço transborda, rompendo a rigidez de um músculo. Um contágio de movimentos anima a face. As asas dos cílios e o tufo do queixo batendo nele mesmo. E quando os lábios se separam, enfim, para indicar o grito, assistimos a toda sua longa e magnífica aurora. Um tal poder de separação do olho mecânico e ótico fez aparecer claramente a relatividade do tempo. E é verdade que os segundos duram horas! O drama está situado fora do tempo comum. Uma nova perspectiva, puramente psicológica, é obtida.

Creio nisso mais e mais. Um dia o cinematógrafo, o primeiro, fotografará o anjo humano.

(publicado em Écrits sur le cinéma, tomo I, p. 191)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Ritmo e montagem


            É a este problema da inscrição cinematográfica do tempo a que se relacionam as questões relativas ao ritmo cinematográfico, ao que foi reconhecida hoje como fonte de força estética.
            Se chama passagens ritmadas de um filme, de passagens compostas num tablado onde as lonjuras são estritamente determinadas umas com relação às outras. Para que uma passagem ritmada produza um efeito agradável ao olho, é preciso, para além de suas qualidades dramáticas, que as distâncias das passagens tenham entre elas uma ligação simples. É sobretudo necessário para uma montagem rápida, onde as extremidades de 2 – 4 – 8 imagens criem um ritmo que seja forçadamente destruído pela introdução de um corte de 5 ou 7 imagens. Há aí uma analogia muito evidente com as leis dos acordes musicais.
            Este ritmo das imagens, é preciso dizer, não é mais que o aspecto mais exterior do ritmo cinematográfico. Pondo-o de lado, para além dela, mais importante ainda, é o ritmo psicológico que se traduz pelo ritmo da vida das personagens no écran e pelo ritmo do próprio roteiro.
            Creio que se obriguei meus atores em Auberge rouge a estes gestos lentos, a este olhar de vida sonhadora, foi justamente para buscar um ritmo psicológico condizente com o romance de Balzac. Este ritmo lento, mantido, forçado, que me foi naturalmente muito criticado, não foi, portanto, um erro porque ele contribui em muito, creio, para criar, e desde o princípio de Auberge rouge, uma atmosfera de espera, de mistério, de inquietude, na qual a maioria dos espectadores se deixou levar.
            Esta é a primeira chave da fotogenia: a mobilidade simultânea seguinte às quatro dimensões do espaço-tempo, não se aplica somente aos aspectos exteriores das coisas; está lá também a chave da mais profunda dramaturgia cinematográfica, da qual ainda resta muito a realizar. A pobreza lamentável dos roteiros vem em primeiro lugar da ignorância desta regra primordial: não existem sentimentos inativos, que não se movam no espaço, não existem sentimentos invariáveis, que não se movam no tempo.
         Um drama cinematográfico deveria sempre ser conhecido em vista unicamente desta perspectiva dramática: uma ação determinada por um sentimento que segue seu curso, tanto que o sentimento evoluído por sua vez, tende a se encontrar em contradição com a ação primitivamente determinada. É desta forma que se pode e deve utilizar, no plano mental dramático, a nova perspectiva dos quatro elementos do cinema.


(publicado em Écrits sur le cinéma, tomo I, p. 121)

segunda-feira, 4 de julho de 2016

A essência do cinema


Sendo, um dia, entrevistado por um jornalista, respondo a muitas questões destinadas, creio, ao espírito deste jornalista, para elucidar o mistério da identidade do cinema. E a primeira destas questões era: “Seria, para você, o cinema, sobretudo documentário?”. E eu respondo: “Não. O documentário não é mais que um lado acessório do cinema”.
            A segunda questão do jornalista foi: “Seria para você a grande direção um lado essencial do cinema?”, e respondi a esta segunda resposta do jornalista: “Não, a direção não é mais que um lado acessório do cinema, ao qual credito pouca importância”. O jornalista continua suas questões, porque um jornalista nunca deixa de ter questões, ele pergunta então o seguinte [p. 119]: “Seriam os filmes estilizados ao gosto cubista ou expressionista a essência do cinema para você?”.
            Nesta ocasião, minha resposta foi ainda mais categórica: “Não. Estes não são mais que acessórios do cinema e quase que uma doença deste acessório”. Creio que podemos considerar esta estilização extrema da decoração como capaz de destruir o equilíbrio de um filme para o lucro de um só elemento, de todo modo secundário de um filme: a decoração, para a qual toda atenção é atirada a despesa do cinema propriamente dito. Lembre-se desta palavra que fez parte do programa do teatro de arte livre, em seu princípio: “A palavra cria a decoração, como o resto”. Bem, creio que o cinema de arte, que está nascendo, possui o dever de inserir, em seu programa, esta fórmula: “O gesto cinematográfico cria a decoração como o resto”.
            O jornalista me pergunta ainda: “Seriam os filmes realistas a essência do cinema, para você?”. Nesta ocasião, nada respondi ao jornalista, porque não sei o que seja o realismo em matéria de arte. Me parece que se uma arte não é simbólica, não é uma arte...
            Disse, então, que nem o documentário, nem a grande direção, nem o expressionismo, nem o realismo são a essência do cinema. Não quero dizer com isso que certos filmes, classificados nestes diversos gêneros, não sejam realmente belos filmes. Quero dizer simplesmente que este lado documental, expressionista, realista não é mais que um lado acessório na estrutura cinematográfica destes filmes. Este lado, ainda que acessório, é, para os olhos pouco exercitados, mais aparente que a própria substância cinematográfica e pode enganar, assim, acerca de sua importância real. Quando um prato está muito apimentado, é a pimenta que você mais sente, mas não é a pimenta que o alimenta.
            Passamos em revista alguns condimentos cinematográficos, alguns condimentos da fotogenia. Voltamos ainda e sempre à questão: “quais são os aspectos das coisas, dos seres e das almas, que são fotogênicas, aspectos estes que a arte cinematográfica possui o dever de se limitar?”.
            O aspecto da fotogenia é um composto variante do espaço-tempo. Esta é uma fórmula importante. Se vocês querem uma tradição mais concreta, ei-la: um aspecto é fotogênico se ele se desloca e varia simultaneamente no espaço e no tempo. [p. 120]

1923.


(fragmento de conferência dada em 1923. Publicado em Écrits sur le cinéma, tomo I, p. 119-120.)

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Entrevista com Luis Buñuel

Por André Bazin e Jacques Doniol-Valcroze


Tomamos conhecimento de Luis Buñuel, com quem mantivemos contato por muito tempo, no ultimo Festival de Cannes. Durante estas manifestações, algumas de suas páginas persistiam cotidianamente a falar de sua “máscara cruel”, repetindo sem se cansar que seu mote preferido é o adjetivo “feroz”. Nada se saberia mais longe da realidade. Maciço, levemente encurvado, Buñuel é algo próximo de um touro repentinamente iluminado pelas luzes da arena. Sua leve surdez é um acréscimo à impressão de solidão de sua personagem; mais leve é a barreira a transpor para encontrar o homem: doce, calmo, terno, reservado, incapaz constitucionalmente da menor concessão, da menor hipocrisia. Além disso, a entrevista que se segue é seu melhor retrato. Duas coisas o definem bem, que tanto podem definir este espanhol misterioso, selvagem e pudico: seu olhar luminoso de entomologista e a fórmula que há em alguma parte desta entrevista a respeito de Robinson e de Sexta-Feira: “eles se encontram orgulhosos como homens”.

André Bazin – Caro Luis Buñuel, as leituras em francês que você perdeu de ver depois de L’age d’or e Terre sans pain, e surpreendido por encontrá-lo em 1951 em um filme mexicano, seria ótimo se você pudesse contar brevemente vossa vida profissional depois dos anos de 1930.
Luis Buñuel – Em 1930, depois de L’age D’or, parti para Hollywood. Fui contratado pela Metro-Goldwin-Mayer.
André Bazin – Por conta de L’age d’or?
Luis Buñuel – Sim, por conta de L’age d’or. A Metro viu o filme em Paris e contratou a atriz do filme, Lia Lys. Depois ela me propôs ir à Hollywood com um contrato. Mas recusei. No fundo, não me interessava em fazer filme naquelas condições. Em Paris, era livre para fazer o filme que queria com amigos que me davam o dinheiro para tanto. Então, eles me contrataram como “observador” para passar seis meses “observando” como se faziam filmes por lá, do roteiro à montagem. Encontrei Claude Autant-Lara... Posso dizer tudo que penso?
André Bazin – Claro, estamos aqui para isso.
Luis Buñuel – É uma escrita automática! [...] Então encontrei Claude Autant-Lara que estava contratado para as versões francesas. Ao primeiro dia, o supervisor observou meu contrato e disse: “É bastante curioso este contrato, mas enfim... por onde quer começar?: o estúdio, o roteiro, a montagem?”. Escolhi o estúdio. Então ele me disse: “no Stage 24 há Greta Garbo trabalhando, você quer ir observar por um mês...”. Fui e na entrada vi Greta Garbo se maquiando. Ela me olhou com o canto do olho, se perguntando quem era este estrangeiro, pois ela disse qualquer coisa em uma linguagem incompreensível (era inglês) – na época só sabia dizer: bom dia -  e fez um gesto a um tipo que me empurrou para a porta. A partir desse dia ia todos os sábados ao meio-dia cobrar meus pagamentos para que não mais se ocupassem comigo. Ao fim de três meses neste regime, encontrei o supervisor que me mandou assistir o ensaio de Lili Damita – lembra de Lili Damita? – e ele me disse: “Você é espanhol?”, disse, “Sim, mas também sou um pouco francês porque trabalhava em Paris”. De todo modo, respondeu o supervisor, o senhor Thalberg pede para que você vá assistir a um filme de Lili Damita. Respondi, “Diga ao senhor Thalberg” (que era o patrão na Metro)... posso dizer o que disse a ele?
Jacques Doniol-Valcroze – Naturalmente.
Luis Buñuel – Disse a ele que não tinha tempo a perder escutando putas. Então terminou. Um mês mais tarde, cancelei meu contrato – ainda faltavam dois meses para o final. Voltei para a França, e me pagaram a viagem de volta e um mês ao invés de dois. É tudo que fiz em Hollywood.
André Bazin – Você fez sua estreia em França em 31?
Luis Buñuel – Sim, exatamente em 31 de abril. Quando aderi à Republica Espanhola. Permaneci em Paris por dois dias, depois peguei emprestado dinheiro para ir de Paris a Madri. Depois voltei para Paris. Tinha lido qualquer coisa de Maurice Legendre, que havia se tornado diretor do Instituto Francês em Madri, a respeito da vida de alguns grupos humanos deixados para trás. Era uma teses de doutorado de 1.200 páginas, um estudo completo e minucioso deste tipo de vida... Este livro me transtornou e eu pensei num filme. Eu tinha um amigo trabalhador espanhol, chamado Acin, que me disse: “Se um dia eu ganhar na loteria, pagarei teu filme”. Três meses depois, ele ganhou na loteria. Mas ele era anarquista e seus camaradas anarquistas pretendiam fazê-lo repartir o dinheiro. Enfim, ele conseguiu segurar uma boa quantia e me deu 20.000 pesetas. Não era o Peru, mas deu para pagar a viagem de Pierre Unick, Elie Lotar e a minha. Pierre Unick, aliás, tinha sido pago pela revista Vogue onde ele publicou uma série de reportagens, muito interessante, que apareceu em três números.
André Bazin – Não sei onde tinha ouvido dizer que Los Hurdes foi um filme comandado pelo governo espanhol para fins sociais e educativos.
Luis Buñuel – De modo algum. Ao contrário. Ele foi proibido pela República Espanhola como desonrando a Espanha e denegrindo os espanhóis. Os oficiais ficaram furiosos e demandaram às embaixadas que o filme nem mesmo fosse exibido no estrangeiro, por ser injurioso à Espanha. Assim, ele não foi projetado em França antes de 1937, em plena guerra da Espanha.
André Bazin – De quem é o comentário?
Luis Buñuel – De Pierre Unick. Fizemos em conjunto.
André Bazin – Quem deu a ideia da música?
Luis Buñuel – É minha, tinha ideias especiais acerca da música no cinema.
Doniol-Valcroze – Gremillon não estava lá para alguma coisa?
Luis Buñuel – Não, conheci Gremillon quatro anos mais tarde, na Espanha, quando o convidei a vir como diretor. Eu era produtor. Ele foi por quase nada, porque a Espanha o agradava.
André Bazin – Certas cenas foram cortadas pela censura. As brigas de galos, em particular.
Luis Buñuel – Sim. Quando o filme foi lançado na França, em 37 creio eu, foram feitos grandes protestos em jornais da Saboia, dizendo que o turismo em Grenoble estava ameaçado porque o comentário, à estreia do filme, indicava que certas localidades, na Europa, na Checoslováquia, na Saboia francesa e na Espanha, onde grupos humanos estavam presos atrás da civilização... Então a Saboia protestou energicamente... Aquela Mme. Picabia que contou que na Saboia há uma vila como a de Los Hurdes, enterrada na neve caída por seis meses, onde o pão é quase desconhecido e a consanguinidade quase total.
André Bazin­ – Que relação você faz entre um filme como Los Hurdes e sua obra anterior. Como você enxerga a relação entre o surrealismo e o achado documental?
Luis Buñuel – Vejo uma grande relação. Fiz Los Hurdes porque tinha uma visão surrealista, e porque me interessava pelo problema do homem. Vejo a realidade de modo diferente daquela que havia visto antes do surrealismo. Estava certo disso e Pierre Unick também.
André Bazin – Você disse que foi produtor na Espanha em 1934. Você permanece na Espanha depois de Los Hurdes para trabalhar com cinema?
Luis Buñuel – Depois de Los Hurdes, trabalhei em Paris. Não queria mais fazer filmes. Tinha os meios materiais para viver graças a minha família, mas ficava um pouco envergonhado em nada fazer. Então trabalhei para a Paramout, em Paris, por dois anos, com dublagem, porque tinha sido enviado para a Espanha pela Warner Bros. para dirigir suas coproduções. Para além disso, também fiz dublagem. Porque tinha encontrado um amigo, Urgoiti, com quem comecei a fazer filmes como produtor. Fiz quatro sem interesse e por isso esqueci os títulos. Depois surgiu a guerra na Espanha. Pensei que o mundo havia acabado, que tinha de encontrar algo de melhor para fazer que filmes; fui posto a serviço do Governo Republicano em Paris que me enviou em 38 a Hollywood em “missão diplomática” para supervisionar, como “technical adviser”, dois filmes que deveriam fazer sobre a República Espanhola. Chegando lá, fiquei surpreso em encontrar o fim da guerra e me encontrei na América completamente abandonado e sem trabalho. Graças à senhorita Iris Barry, consegui um emprego no Museu de Arte Moderna. Achei que faria grandes coisas, mas ao final era apenas trabalho burocrático. Eu tinha quinze ou vinte empregados. Me ocupava das versões para América Latina. Permaneci por lá por quatro anos. Em 1942, fui obrigado a pedir demissão porque era o autor de L’age d’or. A senhorita Iris Barry aceitou minha demissão, aos prantos. Foi no dia de Mers el Kebir; a atmosfera era dramática. Os jornalistas vieram me ver, mas recusei todas as entrevistas, acreditei que aquele momento não era importante para que Senhor Buñuel esteja dentro ou fora do Museu. Estava bastante triste, sem economias e passei como pude os dias seguintes, mais mal que bem. Porque o Gênio americano me colocou como o speaker para os filmes do exército americano. Falei com “minha bela voz” por quinze ou vinte filmes sobre soldagem, explosivos, peças de avião, brevemente  para os filmes técnicos que foram feitos naquele momento.
André Bazin – Você fala tão bem inglês?
Luis Buñuel – Não, não, era sempre para as versões espanholas.
Doniol-Valcroze – Vossa saída do Museu teve relação direta com o livro de Dali? Foi por ele que descobrimos que você tinha feito L’age d’or.
Luis Buñuel – Sim.
André Bazin – Você depois trabalhou para o Gênio americano?
Luis Buñuel – Sim, em Nova York; porque fui contratado pela Warner Bros. que havia planejado a produção de versões espanholas. É bom dizer que sou preguiçoso, mas quando trabalho, trabalho bem. Fui então posto como produtor e era bem pago. Mas esta produção de versões espanholas jamais começou e eu mais uma vez fui contratado como especialista em dublagem.
Doniol-Valcroze – Em que ano estamos?
Luis Buñuel – Passei dois anos em Hollywood, de 44 a 46 e como estava relativamente bem pago, pude poupar o suficiente para realizar o meu ideal: não fazer nada. Apesar disso, já não tinha mais dinheiro em 1947, quando Denise Tual me fez vir ao México. Ela queria que eu fizesse um filme na França. Estava encantado, acreditei ver o céu se abrir. Era A casa de Bernarda Alta, mas esta não podia ser feita porque a família de Garcia Lorca havia vendido os direitos. No entanto, no México encontrei Oscar Dancigers que me propôs fazer um filme. Eu fiz e depois disso permaneci no México.
André Bazin – Qual era o filme?
Luis Buñuel – Um filme de canções. Cantavam-se tangos e não sei mais o quê... muito, em todo caso. Se chamava Gran Casino. Era uma história que se passava em Tampico, na época petrolífera. O roteiro não era ruim, mas havia nele os dois maiores cantores mexicano e argentina, Georges Negrette e Libertat Lamarque. Então os fiz cantar o tempo todo. Era uma competição, um campeonato. O filme não foi muito bem sucedido e fiquei dois anos sem fazer nada.
Doniol-Valcroze – Oscar Dancigers foi sempre seu produtor por lá?
Luis Buñuel – Sim. É um homem a quem devo muito.
André Bazin – Convencionou-se em dizer que no México você trabalhou em condições bem “comerciais”. A produção é feita de modo a obrigar que sejam feitos melodramas ou filmes fáceis?
Luis Buñuel – Sim e estou sempre submisso.
André Bazin – Mas e em Los Olvidados?
Luis BuñuelLos Olvidados foi feito diferente. Depois da falha de Gran Casino e dois anos de inanição, Dancigers manda para mim uma proposta de tema de filme para crianças. Propus timidamente o roteiro de Los Olvidados, que fiz com meu amigo Luis Alcoriza. Ele amou e me disse para trabalhar. Entretempos se apresentava a ocasião de fazer uma comédia comercial e Dancigers me propunha a fazê-la primeiro, uma troca que me asseguraria certa liberdade em Los Olvidados. Fiz então em dezesseis dias Gran Cavalera, que foi um sucesso formidável e que me pôs em Los Olvidados. Evidentemente, Dancigers mandou remover muitas coisas que eu queria colocar no filme, mas me deu certa liberdade.
André Bazin – Que gênero de coisas?
Luis Buñuel – Tudo o que tirei tinha um interesse puramente simbólico. Queria nas cenas mais realistas introduzir elementos loucos, completamente disparatados. Por exemplo, quando Jaibo vai bater e matar o outro garoto, no movimento de câmera queria, ao longe, a carcaça de um grande edifício de onze andares em construção e queria colocar uma orquestra de cem músicos. Estava certo da passagem, ainda que confusamente. Queria adicionar vários elementos deste gênero, mas me foi proibida.
André Bazin – Isto que você nos revela é muito importante, sobretudo para medir onde Los Olvidados pode passar por um filme que tende tanto para o social quanto ao pedagógico, se inscrevendo na tradição de Chémin de la vie, de De hommes sont nés ou de Prison sans barreux. Isto que você vem nos dizer poderia parecer ir de encontro ao realismo social que está mais presente em outros lugares a sublinhar no filme. É importante que você precise em que medida este realismo é um requisito ou se ele não está lá, ao contrário, para fazer algum tipo de modificação na mensagem poética do filme.
Luis Buñuel – Para mim, Los Olvidados é efetivamente um filme de luta social. Porque para creia simplesmente honesto comigo mesmo, devo fazer uma obra do tipo social. Sei que vou nesta direção. Além de que não queria de modo algum fazer um filme-tese. Observei coisas que me afetaram e quis transpor ao écran, mas sempre com esta espécie de amor que possuo pelo instintivo e pelo irracional que podem aparecer em tudo. Sempre fui atraído para o lado do desconhecido ou do estranho que me fascina sem que eu saiba o motivo.
Doniol-Valcroze – Você tinha Figueroa como operador [de câmera], mas você sempre o utilizou fora de seu estilo habitual. Em alguns momentos você o impediu de fazer belas imagens?
Luis Buñuel – Naturalmente, senão o filme não prestaria.
Doniol-Valcroze – Ele deveria estar bastante descontente.
Luis Buñeul – Muito descontente. Tinha lido nos Cahiers a história que você tinha contado...
Doniol-Valcroze - ...aquela da pequena nuvem? Ela é verdadeira?
Luis Buñuel – Ela é verdadeira. O que quer dizer que não agi com ele como um ditador que fornece um favor do gênero: “eis aí, meu amigo, o que tanto esperava”, mas o essencial é verdade. Ao fim de onze dias de filmagem, Figueroa perguntou a Dancigers porque foi ele o escolhido para fazer um filme em que não importava o operador em trabalho. Ao que lhe foi respondido: “Porque você é um operador bastante rápido, bastante comercial”. É verdade, Figueroa é extremamente rápido e muito bom. Isso o tranquilizou. Ao começo ele estava muito admirado de poder trabalhar comigo, quase não entrávamos em acordo, mas acredito que ele tenha evoluído bastante e nos tornamos amigos.
André Bazin – E El? Que representa El dentre seus trabalhos no México? Você introduziu intencionalmente o que queríamos ver, como uma espécie de L’age d’or em filigrana em um roteiro voluntariamente pomposo?
Luis Buñuel – De verdade, eu não queria conscientemente seguir ou imitar L’age d’or. O herói de El é um tipo que me interessa como um escaravelho ou um anófele... desde sempre fui um apaixonado por insetos... tenho um lado entomologista. O exame da realidade me interessa bastante. Para El fiz como sempre no México: me propuseram um filme e em vez de aceitar como tal, ensaiei fazer uma contra proposição que, apesar de ser comercial, me parecia mais propícia para exprimir qualquer uma das coisas que me interessam. Este foi o caso de El. Não tinha pensando em L’age d’or. Conscientemente, quis fazer um filme de Amor e de Ciúme. Mas reconheço que são eles jogados sempre pelas mesmas inspirações, pelos mesmos sonhos e de que eu poderia fazer coisas que se assemelhassem a L’age d’or.
Doniol-Valcroze – E a terrível cena onde o marido costura a mulher; os produtores a compreenderam?
Luis Buñuel – Não sei. Nas escolhas precisas dos elementos não há a escolha precisa de imitar Sade, mas é possível que tenha acontecido sem que eu tome ciência. É natural que eu tenha a tendência a ver e pensar uma situação apenas pelo ponto de vista sádico ou sadista que dizem ser neorrealista ou místico. Digo: o que a personagem deve tomar: um revolver?, uma faca?, uma cadeira? Parei de escolher objetos mais inquietantes. É tudo.
Doniol-Valcroze – E, ao fim, quando o herói se torna monge e sai ziguezagueando pelo caminho, ao quê corresponde ela para você?
Luis Buñuel – A nada. Me faz rir bastante vê-lo partir em ziguezague. Não corresponde a nada, mas me apraz.
André Bazin – Se Los Olvidados foi um filme relativamente livre, El é então um filme de comando no qual introduzistes – conscientemente ou não – muitas coisas para você. Mas você acha que Suzanna também, por exemplo, ou Subida al cielo são pequenos filmes comerciais onde você introduz, de tempos em tempos, qualquer coisa de pessoal. Para nós, eles possuem mais importância do que você os credita e também descobrimos riquezas apreciáveis. São eles, para você, apenas trabalhos comerciais?
Luis Buñuel – Não. Meço pelo prazer que tive ao fazê-los. Suzanna teria sido mais interessante se eu pudesse ter feito outro final. Foi um filme que fiz em vinte dias... mas o tempo não conta... cinco meses ou dois dias, pouco importa, o que conta é o conteúdo, a expressão. Subida al cielo, gostei muito. Adorei os momentos em que nada acontece, o homem que diz: “me dê um fósforo”. Esse gênero de coisas me interessa muito. “Me dê um fósforo”, me interessa enormemente... ou “quer comer?” ou “que horas são?”. Fiz Subida al cielo um pouco neste sentido.
Doniol-Valcroze – Qual é a ordem cronológica de seus filmes depois de Los Olvidados?
Luis Buñuel – Depois de Los Olvidados, fiz Suzanna, depois outro filme que nunca virá para cá e do qual não lembro nem sequer o título. Vocês sabem, estes filmes que fiz no México são enviados sem que me deem aviso. É o governo que decide, ou um arranjo entre os produtores. Eu mesmo nunca quis enviar filmes para festivais ou outro lugar qualquer. Depois fiz Subida al cielo e depois El bruto, outro filme bem rápido: dezoito dias. El bruto poderia ter sido bom, o roteiro meu e de Alcoriza era muito interessante, mas sempre me faziam mudar, de alto a baixo. Agora é um filme qualquer, sem nada de extraordinário.
Doniol-Valcroze – Você filmou Robinson Crusoé?
Luis Buñuel – Depois de El bruto fiz quatro filmes.
André Bazin e Doniol-Valcroze – Ah!
Luis BuñuelRobinson Crusoé, O morro dos ventos uivantes, La ilusíón viaja en tranvía... uma história de roubo de um bonde por dois operários... eles partem de um café e cruzam a cidade com o bonde roubado... há um rolo muito interessante, enfim, o quarto filme se chama Le fleuve de la mort: é sobre a morte mexicana, esta “morte fácil”... você sabe que quando um homem morre, há pessoas que fumam e que bebem pequenos copos de álcool... a vida é pouca coisa, a morta não conta. No filme há sete mortes, quatro enterros e já não sei quantas velas fúnebres.
André BazinRobinson Crusoé é um filme importante para você?
Luis BuñuelRobinson, como os outros, me foi proposto. Não gostava do romance, mas gostava da personagem e aceitei porque há nele algo de puro. Primeiramente porque é o homem em face da natureza, sem romance, sem cenas de amor fáceis, sem folhetim nem intriga complicada. É simplesmente um tipo que chega, se encontra em face da natureza e deve se alimentar. Então o tema me agradava, aceitei e tentei fazer coisas que pudessem ser interessantes. Acredito que ele ainda permaneça porque cortaram passagens distantemente surrealistas e que lhes pareciam incompreensíveis. O filme começa com o desembarque de Robinson: as ondas atirando um homem à ilha, é a primeira imagem. No sétimo rolo ele permanece em uma solidão muito grande, sozinho com seu cachorro. Em seguida ele encontra Sexta-Feira, mas é um canibal e não pode conversar com ele. Passam ainda três rolos a tentar se compreender... e por fim os piratas levam Robinson. Fiz o filme como pude, querendo mostrar sobretudo a solidão do homem, a ansiedade do homem sem a sociedade humana. Quis também tratar do tema do amor... queria dizer que faltam amor e amizade: o homem sem a sociedade do homem ou da mulher. Apesar de tudo, mesmo com os cortes, a relação entre Robinson e Sexta-Feira permanece clara: aqueles de raça “superior”, anglo-saxões, com a raça “inferior”, negra. Ao princípio, Robinson estava desconfiado, imbuído da superioridade, mas ao fim chega uma grande fraternidade humana... eles se veem orgulhosos como homens! Espero que esta intenção tenha sido sensível.
André Bazin – E O Morro dos Ventos Uivantes?
Luis Buñuel – Este é muito curioso. É um filme que eu queria filmar à época de L’age d’or. Para os surrealistas era um livro formidável. Acho que foi Georges Sadoul que o traduziu. Amavam o lado de amor louco, amor sobretudo, e naturalmente como eu fazia parte do grupo tinha as mesmas ideias a respeito do amor e achei o romance formidável. Mas não encontrei patrocinador, o filme permaneceu entre meus papeis e Hollywood o fez oito ou nove anos mais tarde. Não pensava mais nele quando Dancigers, que tinha sob contrato Mistral, ator bastante conhecido em Espanha, e outra vedete hispânica, Irasema Diliam, me pediu para fazer um filme cujo cenário não gostei. Então ele me lembrou que lhe disse de minha adaptação de O morro dos ventos uivantes e o mostrei. Ele aceitou. Em realidade, não mais me interessava em fazer este filme e não busquei inovar. É então o filme como o havia pensado em 1930, ou seja um filme envelhecido vinte e quatro anos, mas creio que seja fiel ao espírito de Emily Brontë. É um filme muito duro, sem concessão e que respeita o sentido de amor do romance.
André Bazin – Dadas as condições de produção no México, você tinha que fazer seus filmes bem rápido, não?
Luis Buñuel – Muito rápido. Exceto Robinson. Todos os outros fiz em vinte e cinco dias de filmagem. Para o México, esse não é um tempo excepcional. Há quem faça em menos ainda. É muito raro que no México um filme leve cinco semanas e somos quatro a poder conceder vinte e quatro ou vinte e cinco.
Doniol-Valcroze – Mesmo Fernandez?
Luis Buñuel – Não, ele é um caso excepcional. O permitem muito mais coisas.
André Bazin – Depois do que nos disse, notei que você guardou algumas conexões com o surrealismo, se não de maneira oficial e ortodoxa, ao menos por inspiração. Você não renega sua formação surrealista, guardando, ao contrário, uma lembrança viva e sempre eficaz.
Luis Buñuel – Não a renego de modo algum. Foi o surrealismo que me revelou que, na vida, há um senso moral que o homem não pode dispensar de segurar. Por ele descobri pela primeira vez que o homem não era livre. Acreditava na liberdade total do homem, e vi sob o surrealismo uma disciplina a seguir. Foi uma grande lição para minha vida e também um passo maravilhoso e poético. Não mais faço parte do grupo há muito tempo.
André Bazin – Você têm dito constantemente que era preguiçoso por uma parte e, de outra, que faliu em diversas ocasiões e de não mais fazer cinema. Nos disse igualmente, em outras conversas, de que vai pouco ao cinema. Acredito que o Festival de Cannes seja para você uma ocasião excepcional para ver filmes. Quantas vezes você vai ao cinema por ano?
Luis Buñuel – Muito pouco. Não queria exagerar, digamos quatro vezes. Talvez seis, talvez dez, mas na média, quatro.
André Bazin – Nestas condições, faz bem que retenha toda coisa profunda no cinema apesar de sua preguiça, as dificuldades que teve ao fazer filmes e pouco gosto que por eles tenha. O que é então que o faz retornar ao cinema, mais que a qualquer outro trabalho ou a outras formas de expressão como o romance ou a pintura?
Luis Buñuel – Não gosto muito de ir ao cinema, mas adoro o cinema como meio de expressão. Não acho que seja o melhor para mostrar uma realidade que não toquemos com os dedos todos os dias. Pelos livros, pelos jornais, por nossa experiência, conhecemos uma realidade exterior e objetiva. O cinema, por seu próprio mecanismo, nos abre uma janela para a prolongação desta realidade. Minha aspiração como espectador de cinema, é de que o cinema descobre qualquer coisa em mim e isso me acontece raramente. O resto não me agrada, já estou bastante velho. Fico contente da ocasião de poder ver muitos filmes neste Festival [de Cannes]. Vi grandes filmes, mas tudo isso não me diz grande coisa. O cinema descobre bem raramente o que procuro e é por isso que quase não vou nunca. Naturalmente tenho amigos que me indicam filmes que gostam e me obrigam às vezes de ir ver. Foi assim que vi Jeux Interdits, que me abriu uma pequena janela: é um filme admirável. Vi também Portrait of Jenny que gostei bastante e que me abriu uma grande janela. Do ponto de vista profissional, sou imperdoável, deveria conhecer mais filmes, ir todos os dias ao cinema... sou o primeiro a me culpar. No México, quando me mandam fazer uma distribuição, nunca sei o que responder, faltando conhecer os atores. É muito ruim, sei que prefiro ficar na minha a beber uma garrafa de whisky com os amigos, mais do que ir ver um filme.
André Bazin – Você disse um dia, contudo, graças a Denise Tual, que você pôde ver Anges du Péché, de Robert Bresson, e que sua principal lembrança do filme era de uma freira beijando pés.
Luis Buñuel – Ah!, sim, uma bela cena de um belo filme.
André Bazin – Fiquei um pouco surpreso porque esta não é a imagem que me parece a mais característica de Anges du Péché!
Luis Buñuel – Sei o que quer dizer... Praticamente, não sou sadista ou masoquista. Não sou mais que teoricamente e não aceito estes elementos como elementos de luta ou violência. Durante todo filme de Bresson, pressenti uma coisa que anunciava, que me atraía bastante e cuja cena ao fim sem dúvida é como uma eclosão perturbadora. É porque me lembro somente que é o beijo nos pés de uma freira morta. Mas assim dito, não gosto muito de beijo em pé de freira morta, nem aos pés de vacas verdes, nem a pé algum... Mas esta, fazia como aflorar alguns sentimentos ocultos ao longo do filme.
André Bazin – Queríamos ainda pedir precisão quanto às suas ideias sobre a música de filme, e mais precisamente a proposta em Hurdes.
Luis Buñuel – Estive certa vez em Nova York em um congresso da Association of producers of documentary films e eles tinham o mais famoso dos jovens compositores de filmes americanos. Apresentamos Hurdes e um deles, entusiasmado, veio me perguntar como tive a ideia maravilhosa de inserir a música de Brahms. Portanto eu nada tinha inventado, vi simplesmente que ao espírito geral do filme correspondia a música de Brahms. Tinha colocado a Quarta Sinfonia... me lembro, eram quatro discos de Brunswick. Todo mundo ficou impressionado com uma coisa assim simples, quase idiota, porque pesquisam sempre efeitos e complicações. Pessoalmente, não gosto de músicas em filmes, acho um elemento covarde, um tipo de trucagem, salvo em certos casos, naturalmente. Fiquei muito admirado de ver neste festival grandes filmes sem música. Poderia citar três ou quatro onde existem fragmentos de vinte minutos ou mais sem alguma música, por exemplo La Grand Aventure... agora como estou surdo, talvez não tenha compreendido que não tenha a todo momento uma grande orquestra de oitenta músicos, mas não me importo e me prova de todo modo que o silêncio era preferível.
Doniol-Valcroze – Com efeito, La Grand Aventure, praticamente não tem música.
Luis Buñuel – No filme japonês, La porte de l’enfer, a música é igualmente muito especial. Vejo, então, refletida na produção mundial a possibilidade de suprimir frequentemente a música. Ah! O silêncio! É isso que é impressionante! Nada descobri na música, mas instintivamente considero como um elemento parasitário que serve, sobretudo, para inserir valor em cenas que não possuem qualquer interesse cinematográfico. Para O morro dos ventos uivantes, me foi entregue a meu estado de espírito de 1930 e como nesta época era um wagneriano perturbado, coloquei cinquenta minutos de Wagner.
André Bazin – E agora, você tem a esperança de um projeto qualquer que seja derivado de sua vontade própria, digo, de um filme que não lhe seja imposto?
Luis Buñuel – Tenho a ideia de um filme de dois rolos, que farei com uma equipe de amigos, técnicos do México. Algo de bom, creio, mas que não seja comercial e que não possa ser projetado em parte alguma além das cinematecas ou cineclubes, mas não posso ainda falar do tema...

(publicado originalmente em Cahiers du Cinéma, n° 36, de junho de 1954)