quinta-feira, 3 de setembro de 2015

No silêncio da noite de Nicholas Ray (in a lonely place, 1950)


Tudo começa com a câmera passeando dentro de um carro. É noite, as lojas ainda estão abertas, as pessoas caminham nas calçadas, e o movimento de veículos é intenso. Os olhos de Bogart surgem no retrovisor do carro enquanto seu nome se inscreve na tela. Tão poucas vezes o cinema foi direto ao relacionar personagem e ator. Os créditos se encerram e então temos nosso primeiro contato com nosso astro. Ele dirige um carro que para ao sinal. A moça do automóvel ao lado puxa conversa com ele. Então nos é revelada a profissão do sujeito e o local onde a trama transcorrerá: estamos em Hollywood e desta vez Bogart é roteirista de cinema.

A atenção dada à profissão do roteirista deixará bem clara a função deste filme: contar uma história. Porque o roteirista nada mais faz que isso, valendo-se de uma escrita técnica. Já nesta primeira cena do sinal de trânsito a característica do personagem de Bogart que criará a ambiguidade de sua relação com o espectador já se apresenta. O noivo da moça que é atriz não gosta da atenção que o estranho no outro carro dá à garota. O chama para uma briga, e prontamente Dixon (personagem de Bogart) salta para fora do veículo. Mas a intimidação do sujeito nada mais era do que da boca para fora. O problema é que nem sempre o oponente de Dixon fugirá ou escapará despercebidamente de seus golpes.


Na cena seguinte, Nicholas Ray monta seus planos numa relação de amizade entre seu protagonista e o resto das pessoas que encontra no restaurante. Encontra, logo na entrada, seu agente e uma moça que guarda os casacos dos clientes. Ela está a ler o livro que ele deve adaptar para o cinema. Conversam amigavelmente. Bogart lhe oferta seu sorriso charmoso algumas vezes, o que mais tarde será entendido como um flerte - mas de fato, nunca o será. A proximidade da câmera cria aquela ambiguidade de sentimentos. Num primeiro momento ela é acolhedora, mostra a cumplicidade entre Dixon e um amigo ator alcoólatra. No momento seguinte, aproxima-se de Dixon para fotografá-lo sozinho num acesso de raiva: um produtor acabou de jogar-lhe na cara que não faz nada de importante desde antes da guerra (e estamos em 1950).

Um jovem produtor entra em cena. O quadro abre para que ele seja posto junto a Dixon e seu amigo ator sentados ao balcão do bar-restaurante. O homem surge falando alto, clamando seu sucesso para todos que estão por perto ouvir. E Ray deixa bem claro que estão todos escutando: corta para as mesas ocupadas e os rostos se direcionando ao recém-chegado. O produtor trata de voltar-se para Dixon e os demais, excluindo o ator fracassado da conversa. A explosão de Dixon com esta ação se dará em mais um ataque, mas desta vez o outro não lhe escapará. Ficamos sabendo, então, que este é seu temperamento e que não raro ele age deste jeito. Mas seus amigos já parecem acostumados com isto e ninguém o diz para mudar de atitude. Simplesmente abaixam a cabeça e dizem: ele é assim mesmo.


Por preguiça de ler o livro, Dixon aproveita para convidar Mildred até sua casa, para que ela possa lhe contar como é a história do livro e que assim ele possa escrever o roteiro que lhe fora encomendado. A moça tem um jeito ingênuo. Age com certa surpresa e fascinação. Todo aquele glamour de Hollywood lhe ilumina, mas ela não busca fazer parte dele. A ideia de simplesmente contar a história para o roteirista do filme já lhe está de bom tamanho. Mas quando Dixon primeiro a convida para ir até sua casa, ela se nega e diz que não pode sair com os clientes do restaurante. Neste momento Ray enquadra Dix e Mildred dando espaço para que a ação de fundo também possa fazer parte daquele enquadramento. O gerente do local passa e ouve a conversa, com um olhar de reprovação e buscando compreender o que se passa, como quem tenta evitar algo de acontecer.

O caso é que Mildred vai até a casa de Dixon, conta entusiasmada a história do livro para um Dixon que faz pouco caso, apesar de continuamente repetir o pedido de que ela continue. Sua impaciência é visível. Esta sempre caminhando pela casa. Troca de roupa, prepara uma bebida para ele e para a convidada, olha pela janela para olhar a sua bela vizinha. Assim como esta ação contínua de Dixon, que somente não acompanhamos quando está a trocar de roupa, o som da voz de Mildred segue por toda a cena. Terminado resumo do livro, Dixon lhe dá algum dinheiro e uma contente Mildred se despede.


No dia seguinte a polícia entra em contato com Dixon. O detetive aparece na casa do roteirista e pede para que ele vá até a delegacia. Travam um diálogo interessante que demonstra certa cumplicidade. Dão a entender que são amigos há um bom tempo. E o policial sabe que seu amigo do ramo do cinema já se meteu em poucas e boas. Chegando à delegacia lhe dizem qual é o caso: Mildred foi encontrada morta e Dixon é suspeito. Mas Dixon possui um álibi que pode lhe salvar o pescoço, a vizinha que ele observava na noite anterior. A moça entra na sala da delegacia onde estão o delegado o detetive e Dixon. Pela primeira vez a sala é mostrada em plano aberto. Mas não será da perspectiva do delegado que acredita ser Dixon culpado que a cena será filmada, e sim do protagonista.

A moça, Laurel, diz ter visto - apesar de Ray não nos ter mostrado - que viu Mildred saindo sozinha da casa de Dixon. Poderia ela estar mentindo?, nos perguntamos. Sim poderia. Não muito mais tarde a curiosidade de Dix o levará a descobrir que a moça é aspirante a atriz, e pode estar querendo aproximar-se dele para alavancar a carreira. O caso é que os dois ficam muito próximos depois disso tudo. E a escrita de Dix finalmente começa a sair. Inspirado, vira dias sentado na mesa enquanto escreve seu roteiro sendo auxiliado por Laurel que datilografa tudo, lhe serve café, arruma sua casa...


Mas as mil maravilhas que ela primeiro enxergava naquele sujeito passam a desmoronar quando descobre o lado mais brusco de Dixon. As explosões de raiva do sujeito a deixam assustada e a fazem confrontar-se com seu projeto de vida ao lado dele que havia preparado. Em determinado momento, Dixon dá a entender que seria capaz de cometer um assassinato por bobagem. Não poderia ter acontecido o mesmo com Mildred? Afinal de contas, a imagem é o que mais conta quando assistimos a uma obra cinematográfica, e não vimos Dixon ir para a cama depois de ter se despedido da moça ou mesmo Laurel na porta de casa a ver partir. A ausência destas imagens cria a ambiguidade a que me referi no início do texto. Ambiguidade que surge no espectador. Inicialmente acredito nas palavras dele, mas depois deixo de acreditar. Poderia ser Dixon um assassino? Em muitos momentos Ray nos deixa essa dúvida. Seja por uma mão maliciosamente posta no pescoço de Laurel, seja no momento em que dirige a simulação de como teria sido o assassinato de Mildred com seu amigo detetive e a esposa dele.

A atitude autodestrutiva de Dixon o direciona para um final trágico. Um sentimento amargo fica preso na garganta do espectador ao ver a relação daquele sujeito com as outras pessoas. Seus amigos o suportam, conformam-se com suas atitudes, seu jeito de ser. Mas os recém-chegados passam a ter problemas. E Laurel faz parte deste novo grupo. Esta autodestruição o faz até mesmo deixar de saber ler as cenas como um bom escritor poderia fazer. Seu momento cotidiano com Laurel em que ele narra como sendo a boa cena de amor de um filme (aquele momento em que seus personagens não falam de amor) esconde o temor de sua noiva frente àquele homem que ela mal conhece. As cenas de amor de No silêncio da noite já haviam passado e Dixon não se dera conta. Tudo o que restará agora será sua caminha ao final da história.

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