sexta-feira, 5 de junho de 2015

Por um cinema puro


A ideia de um cinema puro surge ainda na década de 1910. Alguns de seus principais pensadores eram figuras que se punham, inicialmente, contrárias ao dispositivo cinematográfico. Mas nesta década se dá uma reviravolta. Nos Estados Unidos, antes da criação de Hollywood, David Griffith filma alguns de seus filmes mais famosos, a exemplo de O nascimento de uma nação de 1914 e Intolerância de 1915. São filmes que mostram às plateias de cinema de todo o mundo o que pode ser feito com o cinema partido de seus recursos próprios. Durante esse período, os cineastas buscavam criar narrativas cinematográficas tão bem desenvolvidas e fluidas quanto aquelas que a literatura apresentava. Griffith foi um dos primeiros a mostrar toda essa potencialidade da representação por meio do cinema. Fez isso partindo da linguagem cinematográfica por ele estruturada nos filmes citados. As histórias podiam transcorrer em sucessão ou em simultaneidade. Os saltos históricos poderiam ocorrer num picar de olhos. Tudo isso possibilitado pelas ferramentas de criação fílmica.

Uma das figuras mais importantes do cinema para chegar neste momento em que Griffith promove esta revolução é o pouco conhecido Edwin Porter. O também estadunidense encontrou um cinema que engatinhava. Contratado pelos estúdios de Thomas Edison, Porter pôde fazer centenas de filmes em poucos anos, o que também lhe permitiu a fazer algumas experiência no decorrer do tempo. Dentre elas está a estruturação de uma narrativa especialmente cinematográfico. Se até então os filmes eram feitos com a câmera distante que filma todo o cenário e a narrativa se apresenta pela relação dos atores na cena - o chamado teatro filmado - com Porter o papel da câmera e da montagem da sequência de ação passa a ser especialmente estruturado para o cinema. Em A vida do bombeiro americano, o cineasta faz a montagem sequenciada dos fatos: 1°) a carruagem dos bombeiros passa pela rua; 2°) os bombeiros chegam à casa em chamas; 3°) a vítima dentro da casa em chamas se desespera; 4°) os bombeiros do lado de fora da casa desenrolam a mangueira e colocam as escadas nas janelas do primeiro andar, um dos bombeiros sobe; 5°) o bombeiro entra pela janela onde a vítima agora está desmaiada; 6°) o bombeiro desce a escada com a vítima desmaiado no ombro. Mesmo tendo feito esta organização da narrativa em 1903, ela somente seria vista seriamente e passaria a ser copiada com o grande sucesso artístico dos filmes de Griffith. Intolerância, por exemplo, trás um modelo diferenciado e ousado de narrativa. São diferentes períodos históricos que vão da antiguidade até a contemporaneidade mostrados em simultaneidade para demonstrar o sentimento de intolerância por meio das décadas.


Na Europa, alguns artistas assistem aos filmes de Griffith e enxergam as muitas possibilidades de experimentações estéticas que podem ser realizadas com aquele dispositivo ainda jovem e que, com muita resistência, não era visto como sendo arte. Neste mesmo período surgem duas ideias que permaneceram no imaginário cinematográfico por muito tempo. O primeiro e mais popular deles é a ideia de "sétima arte", que diz ser o cinema a arte capaz de fazer a junção de todas as demais. Em sentido contrário surge a ideia de "cinema puro". Para os pensadores deste, o cinema é uma arte por si só que deve ser pensada partido de suas especificidades. Griffith é uma das figuras responsáveis a mostrar este caminho a muitos dos pensadores do cinema puro, que encontrará no impressionismo francês seu berço mais confortável. Mas o que seriam as especificidades do cinema? Ora, podemos encontra três delas, num primeiro momento: a câmera, a montagem, a imagem.

Comecemos pela câmera. Esta está sempre presente na produção fílmica, desde os seus primeiros dias quando os Lumière a colocaram em frente a sua fábrica para captar a saída de seus operários. Por muitos tempo, o papel da câmera de cinema foi tomado como simplesmente sendo o dispositivo de captação de imagens, não se enxergando as suas capacidades além. Como exemplo disso se tem muito do acidentalismo das primeiras criações: o primeiro travelling, ou seja o movimento de câmera, somente foi criado porque um dos operadores dos Lumière resolveu filmar os casarões de Veneza colocando a máquina numa gôndola. Apesar de ter seu papel reconhecido pelos cineastas, que por vezes teorizavam sobre seu papel, a real relevância da câmera de cinema dentro do espetáculo fílmico surge quando é adaptado o termo mise-en-scène para o cinema. Mise-en-scène significa encenação, mas a encenação cinematográfica possui algumas particularidades, e a presença da câmera é uma delas. Se inicialmente ela era passiva e simplesmente observava os atores, ela passará a ser ativa dentro da construção das cenas, em muitos casos influenciando o sentido do que é criado.


A montagem, recurso posterior à presença da câmera em cena, é aquela especificidade cinematográfica que primeiro salta aos olhos de espectadores, teóricos e cineastas. Por meio dela foram feitas a maior parte das invenções estéticas do cinema puro. Em grande parte, porque é sabido de que nenhuma outra arte, ao menos no período mudo do cinema (mais tarde a música gravada também se valeria de semelhante recurso), possuía tal ferramenta. Podemos dizer a montagem é a modeladora do espetáculo fílmico. É ela quem fragmenta o espaço e o tempo; por meio dela o cineasta cria um ritmo para sua obra - ritmo esse que Bergson já dizia ser própria à criação artística. No cinema puro, a montagem ganha mais espaço porque será por meio dela que foram feitas as tentativas de não se render à necessidade de colocar os letreiros explicativos que interrompiam a ação. A ação deve correr sem interrupção, o ritmo do filme deve ser respeitado para que o espectador possa ser envolvido na obra - daí a referência a Bergson. E para isso os cortes, as sobreposições, as divisões de tela serão fundamentais para primeiro criar o entendimento da obra que se apresenta, em segundo para envolver o espectador numa relação de afecção pelo filme.

Mas o que colocamos em terceiro aqui, é aquele que de mais importante existe no cinema, e pelo qual tanto a montagem quanto a câmera trabalham em prol de sua construção: a imagem. Mas dizermos que a imagem é uma especificidade do cinema poderia ser contraditório, uma vez que outras artes também possuem imagem como característica principal. Mais que isso, elas contam histórias. Vejamos o caso da pintura: um quadro, mesmo estático, mesmo sem apresentar-nos uma sucessão de situações, é capaz de contar-nos uma história. Heidegger bem nos diz isso em A origem da obra de arte. Ao nos colocarmos em frente a uma pintura, por mais simples que ela seja (como um par de botas), aquilo que ali nos é apresentado se abre. Tomemos o exemplo de Guernica, de Picasso. Ao pintar diferentes detalhes da cena de um bombardeio, Picasso nos possibilita a criação de uma cena mental. Cada detalhes da pintura é, em nossa mente, provido de um tempo, de uma sucessão, e a agonia daquele momento é, por nós, reconstruída.


Fica, assim, a questão: não é esse também o trabalho do cinema? Como poderia ele possuir uma especificidade, como poderia existir um cinema puro? Se a pintura é capaz de nos contar uma história, de fazer-nos criar o desenrolar de uma cena, o cinema possuirá um algo a mais que já se faz presente em seu nome. "Cinema" provém de "cinematógrafo", o aparelho criado pelos irmão Lumière que fotografava 16 quadros por segundo. Estas fotografias eram feitas por um sistema cinético, de movimento. Ao mesmo tempo que a película é puxada, uma paleta posta entre a lente e o filme a cobre brevemente para que ela receba a luz que vem de fora e permita a impressão da imagem. Ou seja, o cinema é a arte das imagens em movimento. Esta afirmação soa banal, sem qualquer novidade, mas passa despercebida tanto por cineastas quanto espectadores ao criar/assistir um filme. Se o cinema é a arte das imagens em movimento o que se espera é que tanto a história seja assim apresentada. Não é o que ocorre.

No período mudo do cinema é o momento mais forte do pensamento do cinema puro exatamente pela obviedade da intromissão de outra arte no campo do cinematógrafo. Os letreiros eram pouquíssimo naturais e deveriam aparecer o menos possível. Os cineastas de menor talento eram aqueles que mais deixavam sua história correr com a intromissão dos cartazes. Outros, mais preocupados em fazer uma arte séria, criavam pactos de fazer filmes com o mínimo de intromissão possível. Charles Chaplin e Buster Keaton eram dois dos que em Hollywood representavam este ideário - curiosamente dois cômicos que necessitavam somente de suas performances em tela para a criação de sua arte. Do outro lado do Atlântico, ao alemães contrariando a expectativa (uma vez que eram os franceses que mais teorizavam o assunto), se saíram bem sucedidos. Karl Grune, em 1923, já fazia de A rua um filme de uma hora e meia com apenas quatro letreiros. No ano seguinte é a vez de Murnau filmar A ultima gargalhada que também em uma hora e meia se vale de somente um letreiro para encerrar seu filme.


O filme de Murnau será tomado como base de modelo de como se fazer um filme de cineastas como Alfred Hitchcock. Este que começou a filmar já no final do período mundo do cinema e que teve que se adaptar ao cinema falado. Junto com a fala, todas as expectativas do cinema puro, de criação de filmes somente visando a construção das imagens, desmorona. As obras passam a ser criadas cada vez mais visando as palavras, os diálogos. Nos anos 1930 - hábito que dura ainda hoje - filmes inteiros passam a ser construídos partindo somente dos diálogos de personagens que nada fazem em tela. Volta-se àquele problema que o cinema de Griffith buscava combater: o teatro filmado. Se os atores entram em cena é para que sirvam à imagem. Tudo que surgem dentro do quadro deve ser em serventia à imagem. E os diálogos não são parte componente da imagem. Ainda falando de Hitchcock, chegamos a lançamento de Psicose, em 1960. O filme foi acusado pela crítica estadunidense de não ter conteúdo e poder ser transformado em curta-metragem. Isso porque a maior parte do filme transcorre sem falas, sempre com as imagens - coisa que foi entendida pela crítica francesa que transformou Hitchcock no maior cineasta hollywoodiano de sua geração. Psicose é um filme falado que surge em imagens, o temor da ladra em fuga, o assassino perturbado, a mulher em busca de sua irmã desaparecida, tudo isso surgindo pelas imagens. Se há diálogos no filme não é para explicar a história, como muitos fazem, mas para pautar a relação entre os personagens - muitos filmes mudos colocavam os atores falando em quadro sem seguir de letreiros.

Outro exemplo que podemos trazer é de Antes do amanhecer, filme de Richard Linklater de 1995. Mesmo não sendo Linklater vinculado a um pensamento cinematográfico semelhante ao do cinema puro, seu filme pode ser pensado dessa forma. Isso porque, mesmo sendo construído de longos diálogos, a relação entre o casal que se conhece num trem com escala em Viena e lá resolvem descer se faz por completo por meio das imagens. O medo de dar o passo seguinte e o desejo do casal é registrado pelas imagens enquanto que suas falas em nada deixam clara esta relação. Quando ao fim do filme eles afirmam seu desejo e paixão pelo outro, nós, espectadores, já o sabemos. O que fica claro neste filme é que o cinema puro não impede a colocação de diálogos no filme, contanto que seja respeitada o princípio do cinema: a construção das imagens em movimento.


Mas ao dar este espaço aos atores, não estaria o cinema fazendo uma coligação com o teatro? Não significa que por ter atores seja teatro. Sim, o primeiro cinema se assemelhava bastante ao teatro pelo modo como era filmado, mas isso deixou de ser verdade. Porque não é a presença do ator em cena que faz disso teatro. Se André Kertèsz contrata atores para pousar para uma fotografia, isso não significa que seja teatro, porque seria no caso do cinema? Pela movimentação? Não, mas por aquilo que já foi aqui dito: a imagem. Os atores surgem em cena para se apresentar como parte constituinte de uma imagem. Como o cinema de Robert Bresson vai mostrar, a presença dos atores em cena deve se voltar somente para a construção imagética do filme. Nos filmes de Bresson os atores não demonstram qualquer emoção, ficando sempre por parte da composição das imagens a passagem desta compreensão. Os atores agem em seus filmes como manequins ambulantes, capazes de recitar textos.

Por fim, qual seria, então, o papel do som no cinema? Também o som pode surgir em relação com as imagens, mas de uma maneira muito mais avançada para a criação de cinema. Ainda na década de 1930, Robert Mamoulian dirige alguns filmes sonoros em que a inventividade na construção do som que com relação a imagem é digno de nota. Se na imagem aparecem três senhoras burguesas, o som de seus sorriso infantil será substituído pelo latido agudo de poodles - uma construção semelhante àquela de Eisenstein ao afirmar que duas imagens confrontadas provocariam uma conclusão. Ou, em Apocalipse now, o sargento a espera de voltar para a guerra, ouve o som de um helicóptero vindo do ventilador de teto. O som, em ambos os casos, provoca uma imagem mental no espectador que dá uma significação para a cena.

O cinema é a arte das imagens em movimento e deve ser pensado e feito como tal.

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