terça-feira, 26 de maio de 2015

A Rua de Karl Grune (Die Straße, 1923)


Costumeiramente, críticos e teóricos ao se referir ao expressionismo cinematográfico tendem a imaginar os filmes do movimento como possuidores de diversas inventividades estéticas no campo da montagem. Certamente era com este sentido que se referia ao expressionismo André Bazin ao repudiar a fragmentação do espaço cênico no cinema. O mesmo Bazin que observa que nem todos os cineastas do movimento o faziam: a exemplo de Murnau - e eu diria até mesmo, de Fritz Lang. Mas esta não é uma característica que se aplique a todo o cinema expressionista. Exemplo disso é este A rua que muito bem se vale das técnicas de montagem para poder representar o subjetivo de seus personagens. Lembremos que a característica primordial do expressionismo (e para isso recordemos de Munch) é a representação da percepção emocional subjetiva do mundo, não a sua visão objetiva: daí os cenários distorcidos em O gabinete do doutor Caligari.

Em A rua, filme de Karl Grune escrito por Carl Mayer, o expressionismo apresenta-se na montagem bem colocada em que as impressões da vida da cidade se põem sobre seus personagens. Mas talvez este não seja um filme expressionista, no fim das contas. Porque são momentos bem pontuais em que esta escolha estética surge na trama, e não durante todo o filme. Não podemos dizer que o filme é por inteiro expressionista devido a algumas poucas cenas. Talvez o filme se aproximasse mais do impressionismo francês - escola de Louis Delluc, Jean Epstein, Abel Gance - do que de seu semelhante alemão. Mas deixemos de lado este embate para que pensemos o filme.


Grune consegue construir uma peça do mais legítimo trato cinematográfico, o que significa dizer que é um filme todo feito por meio das imagens. Os cinco ou seis letreiros de diálogo que surgem no decorrer do filme em nada impedem a compreensão da trama que se desenvolve. O filme abre com um homem deitado no sofá de casa enquanto sua esposa prepara o jantar. Por meio da janela ele observa o movimento das sombras das pessoas que caminham na rua. Ele se empolga com o frenesi da cidade, o seu barulho, sua vida. Vai até a janela e enxerga além da rua cheia de gente e automóveis: ele vê tudo aquilo que a cidade pode lhe proporcionar, toda o seu entretenimento. Já sua esposa, ao se pôr em frente à mesma janela, vê somente a rua, mas desta vez ganhando uma conotação diferente, um tanto melancólica.

Este embate surge com força neste cinema alemão dos anos 1920. O país passava por um momento, tal como grande parte do norte do ocidente, de urbanização. As pessoas cada vez mais deixavam sua vida no campo para viver no caos urbano, buscando todas as suas promessas. E claro que nem todas eram cumpridas. Este é um tema muito caro à obra de Carl Mayer que viria a roteirizar alguns filmes de Murnau, em especial Aurora, que tratam exatamente desde assunto. Em A rua não fica explícito de que um dia aquele casal morou no campo, ainda assim fica implícito por meio das ações ingênuas que o homem toma quando decide deixar o conforto do lar e viver os "benefícios" de uma vida na cidade.


O homem encontra uma mulher que combina com dois homens de dar um golpe em alguém para conseguir alguma coisa. O homem encantado pela beleza da mulher que dizia ter perdido seu dinheiro passa a segui-la quando ela diz que o encontrou. A relação entre eles evolui. Os homens que até então eram meros figurantes, tomam a cena e sentam-se à mesa. Logo em seguida surge um sujeito rico que também se encanta com a mulher e senta-se à mesa: a possibilidade de um golpe duplo é vislumbrada pelos bandidos. Terminada a noite numa jogatina mal planejada, a mulher leva os dois homens a quem dará um golpe até um apartamento, onde o sujeito rico é assassinado por seus comparsas. A trama é simples, sendo posta em simultaneidade com a história de um cego que vive com sua filha, uma criança de 3 ou 4 anos que é sua guia. 

Logo em sua saída de casa o homem vê uma bela moça que fica parada junto a uma parede. Ele se interessa pela moça tal como se interessará pela golpista, mais tarde. Mas algo de estranho acontece. O rosto belo da mulher dá lugar a uma caveira. O que poderia isso significar? O homem assusta-se, e atenção alguma dá àquele fenômeno e segue sua caminhada. Este é um primeiro aviso dos cineastas (Grune e Mayer) ao seu protagonista: algo de ruim irá acontecer, era melhor você ter ficado em casa e jantado com sua esposa. Daqui para frente estas proposições expressionistas serão deixadas de lado para que se dê espaço ao simples relato da aventura do homem na cidade.


A cidade engole o homem. É predatória. A rua parece ser o caminho em direção ao divertimento, mas leva somente ao desespero, a uma prisão desconfortável. Quando a inocência abre os olhos e mostra a verdade, o caminho a ser trilhado é o de retorno, o retorno ao lar, ao conforto seguro de quem já conhecemos e de quem esperamos somente o bem-estar. Assim, ao retornar para casa, o homem será recebido por sua esposa com um jarro com o jantar. Ela o esperara pacientemente e não se importa de que ele vá fazer coisa alguma lá fora: ele foi engolido pela rua, mas soube retornar para casa. E depois desta experiência terrível, dificilmente voltará a buscar tudo aquilo que imaginava existir lá fora. A diversidade da paisagem urbana é tentadora, e exemplo disso são suas vitrines, mas o que elas escondem por trás de si é o lado opressor da objetificação humana: em sua saída de casa ainda no início do filme, o homem se depara com uma vitrine que não estranhamente apresenta estátuas e pinturas de mulheres nuas. O desejo de fazer parte desta sociedade levará o homem a se tornar mais um dentro deste grupo. E quanto mais ele se envolve nesta sociedade, mais a inventividade do filme vai sendo deixada de lado quase como uma advertência: a sociedade é castradora da imaginação. A pergunta que permanece é: seria a sociedade ou o dinheiro? É devido ao dinheiro que o sujeito rico é morto ao fim do filme, é devido ao dinheiro que o homem é seduzido pela golpista.

Para resolver a trama, Grune e Mayer se voltam para o uso do letreiro para colocar a criança guia do pai cego dizendo quem é o real assassino. Isso porque todo o envolvimento dos personagens com o capital os leva a uma castração da imaginação. Esta castração resulta na também falta de recursos estéticos por parte do filme que se rende, enfim, ao letreiro. Se inicialmente poderia parecer uma falha frente ao seu começo tão promissor, posto nestes termos, A rua torna-se mais uma obra de crítica social envolta no pensamento formalista de construção de um cinema esteticamente ousado.

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