segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O Desafio de Paulo Cezar Saraceni (1965)

Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi estas galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo pela crítica a serviço dos interesses anti-nacionais pelos produtores e pelo público - este ultimo não suportando as imagens da própria miséria.
(Glauber Rocha, Eztetyka da Fome)


Apesar de alguns problemas artesanais, O desafio consegue se fazer como um filme marcante dentro do movimento cinemanovista. Estes problemas artesanais eram muito comuns aos filmes da época, em grande parte devido aos poucos recursos financeiros dos quais necessitavam os cineastas para construir seus filmes. O resultado desta "pobreza financeira" deu suporte a uma estética própria do cinema brasileiro engajado politicamente. Ele tinha falhas porque não tinha dinheiro para ser feito. Não tinha dinheiro para ser feito porque o capital era concentrado nas mãos de poucos. Mas eles tinham algo a dizer que necessitava ser dito, não importa os problemas que se apresentassem neste percurso. Algo que era necessário que fosse dito.

São dois personagens que nos são apresentados em O desafio, filme de Paulo Cezar Saraceni. Ele [o personagem] é um intelectual, às voltas com a ideia de escrever um livro, que enxerga no golpe militar a fonte de material que poderia lhe servir. Seria o seu livro que acordaria o povo para todas as mazelas que lhes eram impostas e escondidas pelo estado repressor. Ele é amante de uma mulher casada com um empresário. Os interesses de ambos conflitam. Ele tem a sede de revanchismo contra aquele golpe que fora imposto enquanto ela quer manter seu estilo de vida.

Os personagens que mais próximos nos parecem em O desafio, são os atores da peça teatral Carcará que o homem vai assistir em determinado momento da trama. Ficamos boquiabertos com os números musicais, sobretudo, com a força com a qual a nordestina Maria Bethânia brada: “Carcará, pega, mata e come!”. Este grito dos artistas que pode parecer um enxerto longo no filme, une-se ao discurso contrário a toda política que prezava a miséria do povo brasileiro na década de 1960. Para coroar este serviço à miséria do povo – porque a pobreza é uma forma de escravidão – os militares dão um golpe e tomam o país de assalto tornando aquilo que poderia se tornar realidade (o fim da miséria) em somente o sonho de alguns.



Estes alguns que sonham são retratados no filme de Paulo Cezar Saraceni. Eles são intelectuais, sentem que devem fazer algo contra o golpe recém-deferido contra o moral do povo brasileiro. Eles são intelectuais e sabem o quanto que o país pode sair perdendo – como perdeu – caso os golpistas se mantenham no poder. Mas nada fazem. O filme que fora rodado e lançado em 1965 retrata seu tempo. A câmera de Saraceni busca este imediatismo de retratar o absurdo de seu agora. E ao mesmo tempo consegue captar a frustração de nada ser feito contra. As ações contra a ditadura brasileira existiram, sim, mas muito tardiamente surgiram e muitos foram os que pagaram por isto.

Para que possa filmar neste momento é necessário que seja impresso na película os sentimentos dos personagens da vida cotidiana, dos amigos de Saraceni, daquele círculo de figuras que flertavam com o marxismo ou ao menos com a diminuição da pobreza que fora cantada por Bethania no espetáculo tão bem articulado dentro do filme. E assim surge uma atuação que muito se assemelha aos padrões de interpretação dos modelos de Robert Bresson. Os personagens de Saraceni não demonstram sentimentos, embora falem de amor. A distância que é criada entre nós, espectadores, e os personagens, joga no time do filme. O homem e a mulher que conversam são amantes, mas a chama de sua paixão apagou-se. Esta distância que nos é posta dos personagens nos faz sentir a distância que os personagens sentem entre eles. Esta apatia dos personagens nos faz sentir o imobilismo daqueles que sentem a dor do golpe desferido pelos militares.

Este casal vai até uma casa que fora incendiada, ao que parece, há muito tempo. Ele fala que quem tocou fogo na casa fora um poeta, que não tendo dinheiro para pagar o aluguel incendiou a moradia. Na casa não há mais nada a não ser as paredes e o teto frágeis, ameaçando desabar. É esta a morada da paixão dos personagens. Era uma bela casa cheia de vida que fora incendiada e agora somente restam os pedaços que servem de lembrança de um passado feliz. Este mesmo sentimento é o que pode ser sentido no momento retratado do Brasil. Se planejava e se falava de mudanças, que não foram cumpridas devido ao golpe que prometia a restituição da democracia. O balde de água gelada fora virado sobre as cabeças de todos que sonhavam com um país mais igualitário.


O filme entra naquele grupo dos filmes do cinema novo, sendo defendido por Glauber Rocha em algumas ocasiões. É um filme de guerrilha feito por jovens que acreditavam no potencial do cinema de mudar os rumos do mundo, da sociedade, por ser um dos papeis do cinema o trabalho de abrir os olhos, de iluminar o caminho das pessoas - utilizar o cinema de modo semelhante àquele dado pelos regimes fascistas, mas para alcançar um fim totalmente diverso: abrir os olhos das pessoas para a realidade - transformar o espectador de cinema em um sujeito emancipado, que pense criticamente por conta própria. Trata-se de um filme feito as pressas, como já dito, tentando fazer com que o cinema também fosse uma das armas intelectuais a favor da esquerda. 

Tratei aqui de observar aqueles pontos positivos do filme. Os pontos negativos são facilmente encontrados. O público sempre reagiu de maneira contrária ao cinema novo e suas falhas técnicas sempre foram apontadas como motivadores da rejeição aos filmes do movimento. A preferência pela perfeição e objetividade hollywoodiana se dá pelo grande número de filmes vindos da capital do cinema estadunidense, o que os torna centro de referência para o espectador nacional. Somente nestes últimos anos, com o aumento do financiamento governamental das obras cinematográficas e a maior viabilidade de se conseguir os equipamentos de alta qualidade por um preço menor, fez com que o cinema nacional, ao menos no quesito técnico, deixasse de lado estes problemas e se apresentasse ao público brasileiros como bom cinema. Existe um cinema brasileiro interessantíssimo escondido pelo esquecimento. Recuperá-lo é um exercício de rememoração de sua existência. E como cinéfilos, assim devemos fazer.

[indicação extra de leitura: texto 1]

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