sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Por que devemos conhecer os clássicos?

uma questão para os amantes de cinema


Frequentemente, em debates sobre cinema, se levanta a questão de assistir aos clássicos. As pessoas, em grande parte dos casos, o fazem sem refletir o motivo. Quando refletem, dão motivações bobas que não necessariamente vá dizer qualquer razão relevante para que se vá fazê-lo. O primeiro ponto que precisa ser pensado é: você realmente gosta de cinema? Se a resposta for sim, então debruçar-se sobre os clássicos é um exercício de visionamento de diversos filmes, sem necessariamente pô-los em escalas de maior ou menor importância para a história do cinema e sua formação estético-estilística; são filmes em que se encontra a excelência no fazer fílmico.

Deparamo-nos com uma segunda questão, ainda mais delicada: será que todos os cineastas devem assistir aos clássicos? Sim, devem. Ao menos os cineastas preocupados com fazer um cinema de arte. Porque conhecer o cinema é de fundamental importância para não sair dizendo que inventou a roda (neste quesito é interessante ler o texto publicado aqui: De Kane ao 3D – as revoluções do cinema). É um modo de compreender como a arte se desenvolve ao invés de se basear sobre clichês estéticos. Fazer um filme – ou qualquer obra de arte – não é receber a inspiração de uma musa, tal como diziam os gregos antigos. Fazer arte é um ato cerebral. O escritor recorta diversos parágrafos de sua obra até chegar a forma final. O fotógrafo faz cinquenta fotografias de uma paisagem para encontrar uma que seja boa.

Ainda no caso do cineasta, conhecer o cinema clássico se trata de fazer um trabalho que é feito desde os primórdios do cinema: conhecer as formas próprias de se expressar através da arte cinematográfica. Os irmãos Lumière inventaram o cinema, mas foi assistindo aos filmes de Méliès que eles começaram a filmar ficções. E assim se repetiu por toda história do cinema. Griffith conhecia o trabalho de Porter, Eisenstein conhecia o trabalho de Griffith, Glauber o trabalho de Eisenstein e assim por diante. Não se trata de uma questão de utilizar os mesmos modelos de concepção de uma obra cinematográfica, mas de entender como se expressar por meio dela: e isso não se aprende sem assistir aos clássicos.


Para o espectador comum assistir aos clássicos já possui uma motivação diferente. Este não está preocupado com os modelos de expressão do cinema para conceber um filme, ainda que o entendimento destas seja um ponto importante que o leve a conhecer (e compreender) os clássicos. Porque diferentes cineastas encontraram modos diferentes de se expressar a partir das especificidades da linguagem cinematográfica. Assistir a um mesmo modelo de cinema – e consequentemente de expressão, encenação... – pode tornar-se repetitivo. Muitos cineastas possuem influências em comum e terminam por fazer filmes muito similares que somente diferem em suas histórias (e daí nascem os clichês). A diferença que encontramos nas formas dos filmes pode fazer da experiência de assistir uma obra cinematográfica algo de extremamente radical, novo, diferente.

Se diretores de uma mesma escola cinematográfica decidirem por filmar a mesma história, possuiríamos filmes muito similares que difeririam somente em seu roteiro. Já se fosse o caso de diretores de diferentes escolas, de países diferentes que se arriscassem a filmar uma mesma história, encontraríamos filmes radicalmente diversos. É o exemplo da nouvelle vague francesa. Os diretores deste movimento possuíam suas preferências pelo cinema hollywoodiano e assim se inspiravam nele para fazer seus filmes. Faziam filmes de gênero cujo resultado diferia radicalmente daquele cinema em que uma vez eles tomaram como inspiração.

É muito importante, tanto para a formação de um cineasta quanto a de um curioso de cinema de arte, o conhecimento dos clássicos para que melhor possa executá-los e assisti-los. Para que possa compreender que nada posto em um filme o é feito de forma gratuita. Numa verdadeira obra artística sempre existe uma motivação que leva o artista a fazer determinadas escolhas. Cabe ao cineasta saber quais são estas escolhas e cabe ao espectador atento saber colhê-las no decorrer do filme. A exemplo disso existe o exemplo famoso de Stanley Kubrick: em alguns de seus filmes, detalhes na composição do cenário eram modificados de uma tomada para outra conscientemente. O artista fez isso com um motivo. O espectador o entende ou procura a motivação pela qual o artista o teria feito.


O espectador curioso, que busca um cinema de arte, o faz para ser desafiado. O cinema tradicional (de molde comercial) não oferece este tipo de informação ao espectador, tratando-se somente de um modelo de entretenimento. Mas o cinema não é somente um modelo de entretenimento. É uma arte. E é este sentimento de renovação e inovação que move a arte que move, também, o cinema. O espectador que se depara com um filme de arte e que os busca, procura compreender e experimentar as formas estéticas do cinema. Quer ser desafiado intelectualmente. Este desafio intelectual aparece em todos clássicos porque ele está presente em toda construção de imagem que o cineasta-artista vá fazer, em toda construção temporal, na ordem dos eventos montados. 

Ele aparece em formas estéticas radicalmente diferentes: está em O ano passado em Marienbad quando Renais vasculha a memória em busca de um passado que o personagem não sabe se existiu; está em No tempo das diligências quando uma ameaça que somente ouvimos falar paira sobre os personagens que precisam cortar o deserto; está em O encouraçado Potemkin quando vemos detalhes que unidos em uma sucessão nos fornecem o todo de um massacre.

Assistir aos clássicos se apresenta como um ato de amor ao cinema. Este amor que nos leva a adentrá-lo para que conheçamos cada parte, cada canto mais escondido que forma este todo. E conhecer estes detalhes nos leva a saber distinguir os bons filmes dos ruins, os mais artísticos dos menos. Porque existem bons filmes e filmes ruins. Nos ajuda a distinguir aqueles filmes preocupados em se fazerem enquanto expressões artísticas e aqueles que somente querem ser filmes de entretenimento (comercial). E aí está a grande diferença.

Por que devemos conhecer os clássicos? Porque é nos clássicos que se encontra o cinema em seu melhor acabamento, em sua melhor forma: chamar um filme de clássico significa que ele será uma obra surpreendente independentemente da época em que seja vista. Como diria Mark Cousins em sua série The story of film: na odyssey: o que move o cinema é a paixão, a inovação. Se debruçar sobre os clássicos é encontrar esta paixão e fazer-nos constituir um pedaço dela.


[nas imagens os três filmes citados no texto: 1- Ano passado em Marienbad; 2 - No tempo das diligências; 3 - O encouraçado Potemkin.

domingo, 26 de outubro de 2014

Andrei Tarkovski


"A questão sobre o que constitui a linguagem do cinema está longe de ser simples, não estando clara nem mesmo para os profissionais. Sempre que falamos sobre a linguagem do cinema, moderno ou não, tendemos a colocar em seu lugar uma série de métodos atualmente em voga, em geral tomados de empréstimo às artes contíguas. Ficamos, assim, sob o domínio dos postulados fortuitos e transitórios do momento. Torna-se possível, por exemplo, afirmar hoje que 'o flashback representa a ultima palavra do cinema', e declarar amanhã, com a mesma arrogância, que 'qualquer desarticulação do tempo não tem mais lugar no cinema, que a tendência, hoje, é o desenvolvimento clássico do enredo'. Um método pode, por si próprio envelhecer ou ajustar-se no tempo? A primeira coisa que se deve estabelecer, ainda, é a intenção do autor; só depois é que se deve perguntar por que ele lançou mão deste ou daquele recurso formal. Não estamos, por certo, discutindo a adoção indiscriminada de métodos superados pelo uso - isso é a imitação e artesanato mecânico, e, como tal, não é um problema artístico.

Os métodos do cinema certamente se modificam, como os de qualquer outra forma de arte. Já mencionei que os primeiros espectadores saíam correndo da sala de projeção, aterrorizados diante da máquina a vapor que avançava da tela em sua direção, e como gritavam de horror quando achavam que um close-up era uma cabeça decepada. Hoje em dia esses métodos, por si próprios, não provocam emoção alguma e usamos como sinais de pontuação aceitos por todos aquilo que ontem parecia uma descoberta eletrizante; e não ocorreria a ninguém sugerir que o close-up está fora de moda.

No entanto, antes de se tornarem de uso comum, as descobertas de métodos e procedimentos tem de se tornar o único recurso de que o artista dispõe para comunicar, através da própria linguagem, e tão plenamente quanto possível, a sua visão pessoal do mundo. O artista nunca vai em busca do método pelo método, ou apenas em nome da estética; ele é dolorosamente forçado a desenvolver o método como um meio de transmitir com fidelidade a sua visão de autor acerca da realidade.

O engenheiro inventa máquinas em função das necessidades cotidianas das pessoas - ele quer tornar o trabalho e, portanto, a vida, mais fáceis para elas. Porém nem só de pão... Pode-se dizer que o artista enriquece o seu próprio arsenal com o objetivo de fomentar a comunicação e levar as pessoas a se compreenderem melhor, nos níveis intelectuais, emocionais, psicológicos e filosóficos mais elevados. Assim, também se pode dizer que os esforços do artista têm por objetivo melhorar e aperfeiçoar a vida das pessoas, de facilitar a sua compreensão mútua.

Não que um artista seja necessariamente simples e claro no retrato que faz de si mesmo ou em suas reflexões sobre a vida - que podem ser de difícil compreensão. A comunicação, porém, sempre exige esforço. Sem ele e, na verdade, sem um engajamento apaixonado, jamais poderá haver entendimento entre as pessoas.

Assim, a descoberta de um método torna-se a descoberta de alguém que adquiriu o dom da fala. E, a essa altura, já podemos falar do nascimento de uma imagem, ou seja, de uma revelação. E os recursos que ainda ontem tinham a finalidade de transmitir uma verdade alcançada com dor e sacrifício, amanhã podem muito bem se tornar - como de fato se tornam - um estereótipo mais que desgastado."



(TARKOVSKI, Andrei; Esculpir o tempo; tradução: Jefferson Luiz Camargo, p. 119 - 121)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O estado das coisas de Wim Wenders (der stand der dinge, 1982)


direção: Wim Wenders;
roteiro: Wim Wenders, Robert Kramer, Josh Wallace;
fotografia: Henri Alekan, Fred Murphy, Martin, Schafer;
estrelando: Patrick Bauchau, Paul Getty Jr, Samuel Fuller, Roger Corman.

Este é um filme de Wim Wenders que sempre chamou minha atenção, mas que nunca havia tido a oportunidade de assistir. Finalmente pude fazê-lo. Encontrei uma obra interessante. De um cineasta maduro e ciente das escolhas que faz. Escrevo isto porque em diversos momentos da obra são feitas ligações e citações de outras obras que podem soar como meros maneirismos, como citação de cinéfilo para atrair o mesmo de sua espécie, mas que na verdade guardam dentro de si certas metáforas e jogos imagéticos com o próprio filme, com a própria trama, que se desenrola.

Num primeiro momento a equipe filma uma história de ficção científica. O diretor Friedrich Munro volta-se para o câmera indicando a filmagem que farão em seguida. Mas não tem mais película para que seja continuada a gravação do filme. A equipe resolve aguardar no hotel a volta do produtor Gordon que voltara para Los Angeles sob a promessa de conseguir o dinheiro para continuar o filme. Enquanto esperam, Wenders filma a relação dos membros da equipe em cenas curtas, quase como se estivesse a fazer crônicas da vida daquelas pessoas. 


O mais interessante deste primeiro momento são as cenas quando toda a equipe se encontra no restaurante do hotel. Todos falam, mas parece que quase ninguém consegue se entender. A câmera de Wenders, tal como a da garotinha filha de um dos membros da equipe, que filma com uma câmera super-8 o cotidiano daquelas pessoas naquele hotel abandonado. Ela passeia lentamente num travelling lateral para que possa enxergar a todos de cada vez. 

Uma destas cenas breves apresenta um dos poucos casais que nos aparecem em cena. Ele, com uma máquina fotográfica num morro, pede para que seu companheira permaneça parada para que ele possa fotografá-la do alto do morro. Ela, assim que ele dá as costas, caminha e sai do lugar que seu companheiro lhe havia pedido. Este eco do pessimismo do cinema europeu surge de modo explícito neste conjunto de cenas que formam a parte do filme correspondente às filmagens em Portugal.

Quando finalmente o diretor Friedrich Munro encontra o seu produtor desaparecido na segunda parte do filme, Gordon (o produtor agora encontrado) conversa com um amigo seu que o ajuda a manter-se escondido enquanto Munro apenas o observa. Tentam lembrar-se de filmes e dos atores que deles participaram. A estética empregada por Wenders neste momento remete a tais filmes. A cena é filmada dentro do trailer em movimento. Gordon foge de alguém a quem deve dinheiro e por isso não pode ficar parado em um local. É curiosa a câmera de Wenders nesta cena. Não são feitos muitos cortes, tal como é comum ao cinema hollywoodiano, mas ainda assim está ali impressa a característica essencial deste cinema: contar histórias. Se na primeira parte do filme temos uma equipe a espera de seu produtor, agora temos uma história de perseguição com cheiro de morte.


Tal como quando estava em Portugal, a trama desenvolvida em Los Angeles segue um mesmo caminho, apesar de ser contada de forma tão diferente. Se num primeiro momento há a negação de filme de gênero, agora, na terra do cinema de gênero  (Hollywood) é necessário que ele se faça presente. Mas o pessimismo encontrado por Wneders em terras portuguesas encontra-se nos EUA. A grande maioria das histórias são sobre morte e amor, fala Gordon em determinado momento. Este tom pessimista é encontrado por Wenders tanto na cinematografia europeia quanto na cinematografia norte-americana.

Em O estado das coisas a mudança de ambientação provoca a mudança de filme. Se antes tínhamos um filme europeu sobre uma equipe de cinema que espera a volta de seu produtor e, por conseguinte, de dinheiro para continuar as filmagens, quando o personagem do diretor chega aos EUA a película de Wenders torna-se um filme policial em que gangsters estão em busca do produtor desaparecido. Se no hotel abandonado de Portugal uma das atrizes lia o texto que inspirou Rastros de ódio de John Ford é porque, tal como o personagem encarnado por John Wayne no cinema, o diretor necessitará se embrenhar pelas terras dos bárbaros para poder encontrar a pessoa perdida.

Mas estes filmes que se diferem em forma, se assemelham em conteúdo. A diferença se dá no tratamento deste conteúdo. Enquanto o cinema europeu enxerga este mal-estar com seriedade excessiva, o cinema hollywoodiano faz dele um espetáculo. No primeiro caso o tema é questionado e faz o espectador questionar. No segundo caso ele é apresentado, mas não deve ser levado tão a sério assim: é só cinema. O que Wenders nos propõe com esta visão é mostrar que um não é inferior ao outro: trata-se de formas diferentes de se abordarem uma mesma temática porque se tratam de culturas diferentes.

(para outra leitura clique aqui)

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Era uma vez na Anatólia de Nuri Bilge Ceylan (Bir zamanlar Anadolu'da, 2011)


direção: Nuri Bilge Ceylan;
roteiro: Nuri Bilge Ceylan, Ebru Ceylan, Ercan Kesal;
fotografia: Gökhan Tiryaki;

Assisti Era uma vez na Anatólia há alguns dias. O filme permanece em minha mente. Como costuma acontecer quando assistimos a bons filmes. Algumas cenas muito me impressionaram. Deixam marcadas suas presenças na tela. Inscrevem-se em nossa memória para que possamos lembrar-nos dela em algum momento. Passam a ser referencial para obras futuras. No meu caso, o nome deste filme permaneceu em meio as minhas lembranças desde seu lançamento. Não tive oportunidade de assisti-lo antes. Agora que pude, vejo que não me fiz um desfavor em guardar por tanto tempo o nome de tal filme. E como ele soa bem em meus pensamentos: Era uma vez na Anatólia. Apesar de ser um título que possa evocar ao cinema de Sergio Leone, o estilo cinematográfico de seu autor lembra muito mais outro cineasta: Andrei Tarkovski. Comentei sobre esta relação no texto que escrevi aqui no blog sobre outro filme de Ceylan, Distante.

Quanto ao filme, trata-se de um percurso. Um grupo de policiais, junto a um médico legista e um promotor, acompanham dois presos na busca pelo corpo de um homem que eles mataram e enterraram. Grande parte do filme se passa em uma única noite, durante esta viagem por entre a paisagem turca. Os três carros são a única fonte de luz que nos permite enxergar os movimentos dos personagens. E que bela luz estes carros fornecem! Enquanto os automóveis cortam as estradas, a câmera de Nuri Bilge Ceylan os filma de longe. Mesmo estando tão distante de seus personagens, somos capazes de escutar o que eles dizem. Escutamos suas conversas banais, sobre o cotidiano.


O carro para diversas vezes. Os presos não conseguem lembrar-se onde enterraram o corpo. Um dos policiais fica cada vez mais irritado. Acredita que os presos o fazem de bobo. De que tudo aquilo não passaria de uma brincadeira para eles. Mas não é isso que Ceylan nos mostra. Há algo mais profundo naquela relação entre os presos e o assassinato do que poderemos descobrir. Porque o passado está enterrado, e não podemos acessá-lo a não ser com a colaboração da memória de quem o viveu. E se quem o viveu não tem interesse em conta-lo, não poderemos conhecê-lo. Ou poderemos?

Em uma destas paradas, uma cena estranha. E ainda assim, belíssima. Uma macieira ao lado da estrada, cheia de maçãs torna-se uma tentação para um dos policiais [imagem acima]. Ele pula e agarra um dos galhos. Neste ato agressivo, muitas maçãs despencam da árvore em direção ao chão. O policial se contenta em pegar apenas uma. As outras rolam morro abaixo. Enquanto ouvimos a conversa dos policiais, a câmera de Ceylan segue uma das maçãs em seu percurso que ninguém ali presente acompanha. A maçã passa por entre o mato até cair num córrego. A água a empurra, forçando-a a permanecer em movimento. Neste percurso vemos outras maçãs que também caíram no córrego e que tiveram seu movimento interrompido por alguma coisa. Mas a maçã que seguimos não é parada por nada. Esta cena é cortada sem que possamos ver o destino da maçã. Voltamos para o grupo conversando.


Nesta mesma cena, um dos policiais conversa com o médico. Enquanto ele fala, a câmera passeia mostrando-nos os rostos das pessoas. Até mesmo do policial que fala. Mas sua boca não se move. Ainda assim, o ouvimos.

A caravana para num vilarejo. O grupo se alimenta na casa de um conhecido dos motoristas. A ventania os faz ficar sem eletricidade. A cena fica escura, mas ainda assim vemos os personagens sentados na sala da casa simples do homem. Em determinado momento sua filha adolescente aparece com uma bandeja com um lampião. Na bandeja, além da fonte de luz, ela trás chá. Oferece para cada um dos homens. Esta visão os impressiona. A jovem é de uma beleza estonteante. A luz que ela carrega realça sua presença naquele lugar. Todos os homens ficam impressionados. Um dos presos, ao vê-la, chora.

Era uma vez na Anatólia causa certos arrepios. As cenas descritas são exemplo disso. Há um crime, que não nos é explicado. Não sabemos o desenrolar da história. Vemos apenas os carros que cortam a Anatólia. As estradas vazias de Anatólia. Os carros que descem os morros. Tal como a maçã. E tal como o movimento da maçã, não vemos o final. Acompanhamos a autópsia do corpo, que enfim, encontram. Mas nada mais. E ainda assim, não fica a sensação de que faltou algo. Fica a sensação de mistério.

sábado, 11 de outubro de 2014

De Kane ao 3D - as revoluções do cinema


O ano é 2009. Surge o boca a boca sobre um filme. Torna-se um dos assuntos mais comentados do ano. Avatar é vendido como sendo uma grande novidade. Revolucionará o cinema. Trará de volta as plateias que se contentaram a assistir filme na tevê. Muita gente compra esta novidade. Eu sou um deles. Admito que não comprei a ideia a ponto de me deslocar à sala de cinema para assistir ao tão falado filme. Espero e compro o DVD. Me desaponto. Não mais do que o desapontamento que tenho hoje quando me lembro das esperanças que nutri naquele tempo. O 3D foi vendido como sendo uma revolução, mas era tudo marketing. Trata-se de uma tecnologia antiga que foi recauchutada.

Pouco tempo depois descubro a existência de outro golpe de marketing: o cinema 4D. Uma bobagem sem tamanho. Aparentemente vibra as cadeiras. A plateia comum gosta destas novidades. Se tivessem eles algum conhecimento de física, saberiam que todos os filmes possuem a “quarta dimensão” que eles evocam, sendo esta nada mais, nada menos do que o tempo. Todo filme tem tempo. Alguns dizem ser movimento, mas não discutirei mais este tópico aqui.

Voltemos ao 3D. A indústria cinematográfica o adora. Claro! É um motivo para cobrar mais caro pelos ingressos por filmes que nada tem a oferecer a não ser esta falsa novidade. O lado positivo é o ato de entrega do espectador ao espetáculo. Muitos que não usam óculos os põe para poder imergir dentro do imaginário fantástico do filme. Outros tantos têm que colocar os óculos por cima daqueles que já usam diariamente – pobres míopes... E os filmes feitos em 3D continuam a ser feitos. Cada vez mais próximos de serem classificados como filmes de animação.


Mas o que tem o 3D de tão especial? A chamada terceira dimensão seria o equivalente à profundidade. Temos dois olhos para que possamos perceber a distância que nos separa dos objetos que se apresentam a nossa frente, para que não nos esbarremos nas portas, nas cadeiras... Mas no cinema clássico não há esta terceira dimensão. A câmera de filmar possui somente uma lente que é o equivalente a um olho. Só que isto nunca impediu a inventividade dos cineastas.

(A encenação em profundidade se dá quando os atores passeiam pelo cenário, quando se relacionam com um espaço cênico similar aquele que testemunhamos em nossa experiência cotidiana. Nós enxergamos os espaços por completo e não pedaços - não vemos mãos, vemos uma pessoa com mãos, não vemos um vaso, vemos um vaso sobre uma mesa numa sala. A exemplo disso, coloquei a imagem acima de Cidadão Kane. Tanto Orson Welles quanto o ator do outro lado da mesa estão em foco e participam da encenação. Nosso olhar percorre todo este cenário e todos os atores que nele se encontram. Nos é dada a possibilidade de escolher quem ou o que queremos ver.*)

A encenação em profundidade existe desde os primórdios do cinema. Data dos primeiros filmes dos irmãos Lumière. Desde aquela película em que o trem avança em direção à câmera, desaparecendo em uma das bordas do quadro. A profundidade de campo surge aqui acidentalmente. A câmera é posta num posicionamento habitual e mais prático, não há qualquer reconhecimento da importância do posicionamento de câmera na construção da narrativa fílmica.

Este reconhecimento surge mais tarde, na década de 1930. Com Orson Welles, John Ford, William Wyler e Jean Renoir, a profundidade de campo ganha um reconhecimento dramático. O filme já não é mais encenado em duas dimensões, mas em três. A presença dos atores no cenário é desenhada de acordo com a intensidade da cena. - Ao fundo do cenário temos um personagem que deseja e em frente à câmera o seu objeto de desejo. Ambos são filmados em foco. Esta imagem transborda toda a dramaticidade uma vez desejada pelo cineasta. Isto é possível pela aproximação que este modelo de representação possui com o modo como nós, espectadores, percebemos o mundo: nas quatro dimensões, incluindo aí o tempo (ou movimento).


O que o cinema 3D tem a ver com isso? Tudo! O modelo de representação cinematográfico seria aquilo tido como novidade nesta nova tecnologia. Mas esta forma de representação já era feita na década de 1930 por cineastas que tinham forte influência da representação teatral. Isto porque o 3D oferece como novidade o deslocamento em profundidade dos personagens. O que hoje é feito pelos grandes filmes lançados semanalmente é o uso do 3D massivamente nas cenas de ação, em que podemos ser inseridos em cena, mas o seu princípio já havia sido posto em prática por Orson Welles em Cidadão Kane (1941) e Jean Renoir em A regra do jogo (1936).

Mais recentemente pude ver Godard lançar um filme em que busca as novidades linguísticas do 3D. Por ser uma novidade haveria muito a ser explorado. Mas esta não é uma novidade tão nova assim. Ainda não vi o trabalho de Godard. Anseio muito em vê-lo. Ainda assim continuo cético quanto ao papel do 3D em dar um novo passo na revolução do cinema. Ele é um efeito óptico curioso, de fato. Mas não se fez como revolução e dificilmente o fará. É uma aposta da indústria cinematográfica hollywoodiana de manter seu poder sobre os cinemas de todo mundo enquanto perdem espaço para a tevê e internet. Enquanto isso o cinema de arte continuará. Porque este, sim, é quem trás as verdadeiras revoluções. 


* para melhor entendimento deste tópico ler: Cidadão Kane é um clássico, você sabe por quê?

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O Desafio de Paulo Cezar Saraceni (1965)

Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi estas galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo pela crítica a serviço dos interesses anti-nacionais pelos produtores e pelo público - este ultimo não suportando as imagens da própria miséria.
(Glauber Rocha, Eztetyka da Fome)


Apesar de alguns problemas artesanais, O desafio consegue se fazer como um filme marcante dentro do movimento cinemanovista. Estes problemas artesanais eram muito comuns aos filmes da época, em grande parte devido aos poucos recursos financeiros dos quais necessitavam os cineastas para construir seus filmes. O resultado desta "pobreza financeira" deu suporte a uma estética própria do cinema brasileiro engajado politicamente. Ele tinha falhas porque não tinha dinheiro para ser feito. Não tinha dinheiro para ser feito porque o capital era concentrado nas mãos de poucos. Mas eles tinham algo a dizer que necessitava ser dito, não importa os problemas que se apresentassem neste percurso. Algo que era necessário que fosse dito.

São dois personagens que nos são apresentados em O desafio, filme de Paulo Cezar Saraceni. Ele [o personagem] é um intelectual, às voltas com a ideia de escrever um livro, que enxerga no golpe militar a fonte de material que poderia lhe servir. Seria o seu livro que acordaria o povo para todas as mazelas que lhes eram impostas e escondidas pelo estado repressor. Ele é amante de uma mulher casada com um empresário. Os interesses de ambos conflitam. Ele tem a sede de revanchismo contra aquele golpe que fora imposto enquanto ela quer manter seu estilo de vida.

Os personagens que mais próximos nos parecem em O desafio, são os atores da peça teatral Carcará que o homem vai assistir em determinado momento da trama. Ficamos boquiabertos com os números musicais, sobretudo, com a força com a qual a nordestina Maria Bethânia brada: “Carcará, pega, mata e come!”. Este grito dos artistas que pode parecer um enxerto longo no filme, une-se ao discurso contrário a toda política que prezava a miséria do povo brasileiro na década de 1960. Para coroar este serviço à miséria do povo – porque a pobreza é uma forma de escravidão – os militares dão um golpe e tomam o país de assalto tornando aquilo que poderia se tornar realidade (o fim da miséria) em somente o sonho de alguns.



Estes alguns que sonham são retratados no filme de Paulo Cezar Saraceni. Eles são intelectuais, sentem que devem fazer algo contra o golpe recém-deferido contra o moral do povo brasileiro. Eles são intelectuais e sabem o quanto que o país pode sair perdendo – como perdeu – caso os golpistas se mantenham no poder. Mas nada fazem. O filme que fora rodado e lançado em 1965 retrata seu tempo. A câmera de Saraceni busca este imediatismo de retratar o absurdo de seu agora. E ao mesmo tempo consegue captar a frustração de nada ser feito contra. As ações contra a ditadura brasileira existiram, sim, mas muito tardiamente surgiram e muitos foram os que pagaram por isto.

Para que possa filmar neste momento é necessário que seja impresso na película os sentimentos dos personagens da vida cotidiana, dos amigos de Saraceni, daquele círculo de figuras que flertavam com o marxismo ou ao menos com a diminuição da pobreza que fora cantada por Bethania no espetáculo tão bem articulado dentro do filme. E assim surge uma atuação que muito se assemelha aos padrões de interpretação dos modelos de Robert Bresson. Os personagens de Saraceni não demonstram sentimentos, embora falem de amor. A distância que é criada entre nós, espectadores, e os personagens, joga no time do filme. O homem e a mulher que conversam são amantes, mas a chama de sua paixão apagou-se. Esta distância que nos é posta dos personagens nos faz sentir a distância que os personagens sentem entre eles. Esta apatia dos personagens nos faz sentir o imobilismo daqueles que sentem a dor do golpe desferido pelos militares.

Este casal vai até uma casa que fora incendiada, ao que parece, há muito tempo. Ele fala que quem tocou fogo na casa fora um poeta, que não tendo dinheiro para pagar o aluguel incendiou a moradia. Na casa não há mais nada a não ser as paredes e o teto frágeis, ameaçando desabar. É esta a morada da paixão dos personagens. Era uma bela casa cheia de vida que fora incendiada e agora somente restam os pedaços que servem de lembrança de um passado feliz. Este mesmo sentimento é o que pode ser sentido no momento retratado do Brasil. Se planejava e se falava de mudanças, que não foram cumpridas devido ao golpe que prometia a restituição da democracia. O balde de água gelada fora virado sobre as cabeças de todos que sonhavam com um país mais igualitário.


O filme entra naquele grupo dos filmes do cinema novo, sendo defendido por Glauber Rocha em algumas ocasiões. É um filme de guerrilha feito por jovens que acreditavam no potencial do cinema de mudar os rumos do mundo, da sociedade, por ser um dos papeis do cinema o trabalho de abrir os olhos, de iluminar o caminho das pessoas - utilizar o cinema de modo semelhante àquele dado pelos regimes fascistas, mas para alcançar um fim totalmente diverso: abrir os olhos das pessoas para a realidade - transformar o espectador de cinema em um sujeito emancipado, que pense criticamente por conta própria. Trata-se de um filme feito as pressas, como já dito, tentando fazer com que o cinema também fosse uma das armas intelectuais a favor da esquerda. 

Tratei aqui de observar aqueles pontos positivos do filme. Os pontos negativos são facilmente encontrados. O público sempre reagiu de maneira contrária ao cinema novo e suas falhas técnicas sempre foram apontadas como motivadores da rejeição aos filmes do movimento. A preferência pela perfeição e objetividade hollywoodiana se dá pelo grande número de filmes vindos da capital do cinema estadunidense, o que os torna centro de referência para o espectador nacional. Somente nestes últimos anos, com o aumento do financiamento governamental das obras cinematográficas e a maior viabilidade de se conseguir os equipamentos de alta qualidade por um preço menor, fez com que o cinema nacional, ao menos no quesito técnico, deixasse de lado estes problemas e se apresentasse ao público brasileiros como bom cinema. Existe um cinema brasileiro interessantíssimo escondido pelo esquecimento. Recuperá-lo é um exercício de rememoração de sua existência. E como cinéfilos, assim devemos fazer.

[indicação extra de leitura: texto 1]